Este artigo está sendo republicado por motivos óbvios.
Quando era presidente da Embratur, João Doria tentou implantar no Brasil uma novidade na indústria do turismo. É verdade que, na sua época, a estatal publicou em revistas estrangeiras anúncios com mulheres em trajes mínimos, na praia, um convite subliminar ao turismo sexual.
Mas esta já era uma prática na empresa.
O que nunca havia sido sequer cogitado é tornar a seca e a miséria no Nordeste um atrativo turismo para os moradores do Centro-Sul do Brasil.
Doria inovou.
O escritor Ivan Mizanzuk postou hoje no Twitter notas publicadas em jornais da época.
Em julho de 1987, a Folha de S. Paulo noticiou:
“A seca, os flagelados famintos e a caatinga nordestina poderão virar atração turística por sugestão do presidente da Embratur, João Doria Júnior, que propôs em Fortaleza (CE) a instalação de albergues turísticos na região”, disse.
A Gazeta Mercantil (importante jornal da época) reproduziu um discurso de Doria a empresários do Ceará, em que ele disse que “a seca poderia ser um ponto de atração turística no Nordeste”.
A reação foi imediata. Jornais locais repercutiram a “ideia” extravagante do gestor da Embratur.
“A fome como atração turística” é o título de uma dessas notas.
O texto afirma que Doria defendeu a redução de verbas de irrigação, como forma de aumentar “as de turismo para exibir flagelados da seca porque os habitantes do eixo Rio-São Paulo só conhecem a seca através da imprensa. Ou seja, em vez de empregar o dinheiro do governo para financiar a produção, empregaria tal verba para que os turistas, em ônibus refrigerado e regado a uísques, possam se distrair vendo as crianças esqueléticas tomando lama em lugar de água”.
A radialista Adísia Sá, na época responsável por um dos programas de maior audiência de Fortaleza, o “Debate do povo”, promoveu uma intensa campanha contra Doria, que acabou repercutindo na Câmara Municipal de Fortaleza, onde Doria foi muito criticado.
Adísia disse que organizaria uma manifestação para “receber a primeira agência de viagens que chegar com uma excursão para visitar a seca” e fazê-la voltar para o Sul, debaixo de vaia.
O caso chegou até o presidente da época, José Sarney, a quem se pediu a demissão de Doria.
Mas o presidente da Embratur se manteve no cargo. Suas costas eram quentes: ele era apadrinhado de Roseana Sarney, filha da presidente, a quem ele acompanhava no Rio de Janeiro, no período em que Roseana esteve separada de Jorge Murad.
Adísia já está com mais de 80 anos, é articulista do jornal O Povo, mas não trabalha mais no rádio. Eu conversei com ela pelo telefone. Adísia disse estar impressionada com a popularidade que Doria alcançou em São Paulo, mas não quis falar do assunto.
“Faz tanto tempo”, disse.
João Doria chegou à prefeitura de São Paulo com um discurso de gestor eficiente, que nunca foi político, um trabalhador desde adolescente.
Para tanto, mostrava sua carteira de trabalho, tirada quando tinha 13 anos de idade, e a exibia como prova de sua inclinação para o trabalho honesto.
O que Doria nunca mostrou é um registro profissional que teria tido nesta idade.
As pessoas mais velhas sabem que, durante a ditadura, a carteira profissional era um documento mais importante do que o RG para adolescentes.
Era a primeira coisa que os jovens mostravam à polícia quando abordados, para evitar prisões por vadiagem, que eram comuns na época. E menores eram encarcerados tanto quanto os adultos.
Uma face mais aproximada do verdadeiro jovem Doria foi descrita por ele mesmo, num artigo publicado na Folha de S. Paulo em 1988, quando já buscava oportunidade de negócio em Campos de Jordão.
Narrando como era sua vida lá, Doria contou:
— Já adolescente, no final da década de 60, eu peguei os resíduos talvez da época áurea de Campos de Jordão. Os jovens usavam calças rancheiras da marca Far-West e camisas de flanelas listrada, aplaudiam os shows de Elis Regina, Jair Rodrigues e até atrações internacionais nos salões do já então tradicional Grande Hotel. Os chás no Toriba eram e permanecem sendo um ato de elegância gastronômica e de moda. Julho era um mês aguardado pelos que subiam a serra, numa horrível viagem de quase quatro horas pela antiga estrada, para desfrutarem do frio seco e gostoso.
No mesmo texto, explica como se divertia com as brigas dos playboizinhos:
— Em Capivari, um dos centros de Campos, a badalação era animada, com batidas do bar Cremerie. Ajustavam-se namoricos e marcavam-se encontros na boite Maumauzinho. Noites quentes aqueles no Maumau, especialmente quando os irmãos Abdalla e Conde resolviam exercitar dotes pugilísticos. Sobravam dores, mesas quebradas e muitas estórias (sic) para alimentar as rodas de papo à beira da lareira. Gincanas e as disputadas eleições de Miss Suéter no Tênis Clube, completavam o cenário das temporadas de inverno.
Alguém consegue ver neste perfil o João Trabalhador apresentado na campanha para a prefeitura de São Paulo?
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PS: Doria foi demitido da Embratur em agosto de 1988, sob a suspeita de desvio de recursos, entre outras irregularidades.
PS 2: Em 16 de agosto, quando o post foi republicado, a assessoria de imprensa do prefeito João Doria enviou a seguinte e-mail:
Sobre a matéria – “Aos poucos, a máscara cai: Doria quis transformar miséria no Nordeste em atração turística. Por Joaquim de Carvalho”, favor a incluir a nota na matéria, que foi publicada no dia 16 de agosto, no DCM:
As publicações de 1987 foram desvirtuadas. João Doria, então presidente da Embratur, defendeu que o Ceará não explorasse apenas o litoral em termos turísticos, mas valorizasse o interior, como a região da caatinga, para promover a geração de renda. Trinta anos depois, estas regiões, e não apenas no Ceará, têm vários atrativos turísticos – caso de Quixadá, apenas para ficar num exemplo. Doria nunca disse que a miséria da seca deveria ser explorada nem defendeu redução de investimentos em irrigação.
Segue adendo à nota, com as aspas do então presidente da Embratur, João Doria, ao jornal O Globo:
“A caatinga brasileira poderia ser um ponto de visitação turística e gerar uma fonte de renda para a população sofrida da área, respeitando as características culturais e humanas da população, sem exploração da miséria”.
PS 3: O jornal O Globo, apesar desse esclarecimento, criticou o prefeito à época, em editorial, conforme reportagem já publicada neste site: