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Apesar do cansaço da expressão, é preciso “disputar a narrativa”. Por Luis Felipe Miguel

Comunicação nas redes sociais. Foto: Reprodução

“Disputar a narrativa” entrou no jargão político. Às vezes dá até cansaço de ouvir a expressão. Ninguém mais debate, argumenta, polemiza, questiona, faz proselitismo, nada disso. Todo mundo “disputa a narrativa”.

Mas a expressão tem sentido. Muito da luta política consiste em relacionar fatos e atores, em estabelecer motivações, em ligar causas a consequências, em dotar de sentido um fluxo de acontecimento. Ou seja: em construir narrativas.

Como escreveu Paul Ricœur: “Contando histórias, os homens articulam sua experiência do tempo, orientam-se no caos das modalidades potenciais de desenvolvimento, demarcando com intrigas e desfechos o curso demasiado complicado das ações reais. Desta maneira, o homem narrador torna inteligível para si mesmo a inconstância das coisas humanas”.

Parece que nós, humanos, temos um pendor natural por narrativas. Nós as procuramos, ansiamos por elas, precisamos delas.

É por isso que o nouveau roman francês desapareceu sem deixar rastros, que a arte abstrata nunca sai de um nicho, que quanto mais serial é uma música mais árduo é escutá-la.

Uma parte do impacto político das novas tecnologias da comunicação (e especificamente das mídias sociais) tem a ver com isso. Nelas, as narrativas se tornam mais dispersas, fragmentárias, correspondendo às formas cada vez mais predominantes de consumo de informação.

Isso torna o novo ambiente comunicacional mais desafiador para a esquerda. É difícil construir uma narrativa contra-hegemônica abrangente. A contestação às representações dominantes do mundo precisa ser focada em pontos específicos, dentro de um enquadramento geral já dado.

Jair Bolsonaro e o senador Marcos Rogério, que popularizou a palavra “narrativa” na CPI da Covid
Foto: Divulgação

Isso é insuficiente para uma disputa de narrativas que realmente desafie a ordem social vigente.

A organização do público em “bolhas”, isto é, enclaves em que o internauta se vê livre de contato com visões de mundo divergentes, piora a situação.

A extrema-direita – que se apresenta como “antissistêmica”, mas formula críticas apenas superficiais e isoladas à ordem de dominação vigente, e que sabe ancorar a identidade de sua base às bolhas que ela cria – nada de braçada neste novo mundo.

A esquerda sempre soube fazer um uso criativo e eficaz dos meios expressivos à sua disposição. Mas parece travada agora. Isso é um efeito das novas tecnologias, de alguma especificidade delas – ou da crise da esquerda?

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Luís Felipe Miguel

Professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Demodê - Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades.

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Luís Felipe Miguel

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