A aplicação da teoria do domínio do fato no julgamento de Lula. Por Rodrigo Medeiros da Silva

Atualizado em 30 de janeiro de 2018 às 9:44

Por Rodrigo Medeiros da Silva no site Justificando.

João Pedro Gebran Neto. Foto: Divulgação/Flickr/TRF-4

No último dia 24 de janeiro, o Brasil acompanhou o julgamento de um recurso de apelação impetrada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no processo nº 5046512-94.2016.4.04.7000, que é difusamente conhecido por ter como objeto um apartamento triplex no litoral de São Paulo.

Entendendo a importância deste acontecimento sob a perspectiva política, as considerações a serem tratadas se referem exclusivamente a questões de ordem técnica, mais especificamente a aplicação equivocada da teoria do dominío do fato. Aliás, este julgamento deve ser tratado como um grande ponto de inflexão e instigar uma reflexão acerca dos destinos que o Direito brasileiro, mais especificamente o Direito Penal.

O relator do feito, Desembargador Federal João Pedro Gebran Neto, já se encaminhando para o final do seu longo voto assim destacou:

“[…] o que houve, e para mim está demonstrado na verdade, o concerto de agentes para a mesma finalidade, tendo eles plena consciência da ilicitude dos seus atos, com especial destaque ao ex-presidente atribui isso não só à determinação de nomeação para o preenchimento de cargos chaves, mas também a crítica pela ausência de ação e de ânimo para estancar os desígnios autônomos. Ao contrário de fazer cessar a atividade criminosa, deu-lhe sustentação. A nomeação de dirigentes da estatal petrolífera repousava em sua esfera de seu poder político e não de terceiros. A responsabilização criminal daquele que não atua nos atos finais de corrupção, como no caso ora analisado, com razão é muito debatido na doutrina e na jurisprudência.”[i]

Nestes termos, fica claro que o julgador aplicou a chamada teoria do domínio do fato. E o fez de forma equivocada. O professor Claus Roxin ensina que a teoria do domínio do fato surge na década de 30 do século passado e destaca que o autor do delito é aquele que desempenha papel decisivo e determinante na realização da ação típica.[ii]

Portanto, segundo Roxin, teoria do domínio do fato retrata uma restrição ao conceito de autor, diferentemente da teoria subjetiva que inclui a vontade no âmbito do conceito de autoria. Neste rumo, a teoria do domínio do fato delimita claramente a atuação do autor (aquele que domina a ocorrência do fato delituoso) e do partícipe (que não possui este capacidade de domínio).[iii]

O desembargador relator, como acima destacado, salienta que o Lula teria condições de fazer cessar a empreitada delituosa, pois nomeou os diretores da Petrobras envolvidos no escândalo nacionalmente conhecido. Além de tratar de fatos estranhos à causa, o relator inobserva aspectos fundamentais da teoria do domínio do fato.

Segundo o julgador, o domínio da ação delituosa se dá em função de uma suposta relação hierárquica existente, já que Lula nomeara os diretores da Petrobras e que, deste modo, Lula deveria impedir a ocorrência do fato típico. O próprio professor Roxin, em entrevista concedida em 2012 às repórteres Cristina Grillo e Denise Menche, do jornal Folha de São Paulo, assim responde a uma questão sobre participação apenas pelo fato de sua posição hierárquica:

A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso. […] A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção [“dever de saber”] é do direito anglo-saxão e não a considero correta.”[iv]

Naquela oportunidade, o professor alemão comentava o uso indevido da teoria na AP 470, o que também foi citado pelo relator. O relator menciona o fato de haver um “concerto de agentes” para empreender os delitos praticados. No entanto, tanto a denúncia como o voto condutor, cita a nomeação de diretores da Petrobras, por parte de Lula, como ato criminoso. Deve estar demonstrado o liame subjetivo entre os autores.

A denúncia, na página 28, diz textualmente que:

“[…], o ex-Presidente da República comandou o esquema, tendo sobre ele domínio de realização e interrupção. Não apenas determinou sua efetivação, que beneficiava seu Governo e permitia a obtenção de vantagens ilícitas, mas também poderia ter interrompido esse grande esquema criminoso na sua origem ou ao longo de sua realização.”[v]

O revisor, Desembargador Federal Leandro Paulsen, também aderiu, equivocadamente, a essa tese. Segundo o revisor, “a teoria do domínio do fato, diga-se, não amplia o rol daqueles que podem ser beneficiados por um crime, mas dá elementos para quem concorre para ele.”[vi].

Tal afirmação, como já abordado acima, não exprime o real objeto da teoria do domínio do fato. O domínio do fato “configura elemento geral da autoria, sem o qual não se pode falar de autoria.”[vii] Ou seja, a aludida teoria visa distinguir as figuras de autor e partícipe, dentro do contexto fático que engloba a cogitação da prática delituosa e até a concretização do resultado.

O ex-presidente foi condenado por corrupção passiva e teria, para tanto, concorrido para o recebimento de vantagem indevida na forma de um apartamento tríplex no Guarujá. Evidentemente que a trama delituosa para a obtenção da vantagem mostra-se extremamente sofisticada, devendo restar provado que ação de Lula de nomeação de diretores, atos próprios de Presidente da República e outras iniciativas atinentes ao cargo tivessem concorrido para a consumação dos delitos imputados.

Enfim, pode-se concluir que os conceitos próprios do Direito Penal estão sendo mal compreendidos e mal aplicados. Resta saber qual o objetivo para se lançar mão desses conceitos de forma tão descabida. Fica claro que a utilização de ferramentas próprias do sistema de justiça criminal para fins políticos gera um precedente perigoso, semelhante aos utilizados nos sistemas totalitários.

São conhecidas as consequências deste julgamento para as próximas eleições. O cenário acaba sendo diverso, caso Lula não seja candidato. Ademais, outra consequência desse julgamento é a radicalização que não se coaduna com o Estado Democrático de Direito. A radicalização e a exacerbação de paixões geram um clima de ódio. É uma decepção para os estudiosos do Direito. Vivemos tempos sombrios, assemelhando-se ao Nacional Socialismo.

Rodrigo Medeiros da Silva é mestre em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas.


[i] Disponível em Acesso em 25 jan. 2018.

[ii] ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general. Trad. Diego-Manuel Luzon Pena et alli. Cizur Menor: Editorial Aranzadi, 2014, p. 70.

[iii] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2006, p. 352.

[vii] ZAFFARONI, Eugenio Raul. BATISTA, Nilo. ALAJIA, Alejandro. SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro, vol. 2, tomo 2. Rio de Janeiro: Revan, 2017, p. 440.