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POR TEIVO TEIVAINEN
A esta altura a história já chegou no Brasil: um pequeno grupo de bolsonaristas tentou tumultuar minha fala na Universidade de Helsinki. Não foi uma tentativa de me impedir de falar por completo, e o estrago poderia ser bem maior. Mas acabou rendendo assunto na Finlândia, inclusive no maior tabloide local. Como é provável que muito mais gente venha a passar por isso nos próximos anos, me pareceu útil compartilhar algumas impressões.
A primeira coisa a observar é o caráter altamente mediado da interação. Estava claro que o objetivo ali não era tanto tentar convencer o público de alguma coisa, e menos ainda ter um debate franco de ideias no sentido de trocar argumentos ou pedir e oferecer razões. Tratava-se de criar uma situação que pudesse ser documentada, editada e compartilhada nas redes sociais. De saída, isto torna praticamente impossível uma conversa de boa fé. O que interessa é tentar pinçar uma frase ou palavra, ou provocar uma reação desabonadora.
A maneira como o incidente começou é ilustrativa. Referindo-me ao discurso em que Bolsonaro afirmou que seu governo serviria não para fazer mas para desfazer, comentei que ele tivera o cuidado de não usar a palavra “destruir”. A membra do grupo cuja função era interromper respondeu, “ele não disse isso, pare de mentir”, e seguiu-se um curto diálogo de loucos em que eu dizia “mas eu disse justamente que ele não disse” e ela respondia, “pois é, pare de mentir”. (Juro que lembrei do velho esquete do Monty Python: “I came here for a good argument, this is just contradiction”.
Mas fiquei com medo de dizer isto e ouvir, “no it isn’t!”) Mais que isso, era notável o grau de alheamento dos três em relação à fala em si. Embora estivessem sentados bem na minha frente, fora algumas reações teatrais e sussurros ou risinhos intimidatórios, a mulher que falava e o homem que filmava passaram a maior parte do tempo na internet. (Alguém que olhou por cima do ombro deles disse que vários minutos foram consumidos escolhendo filtros de Snapchat ou Instagram, então se me virem por aí com cara de gatinho, saibam que não fui eu.)
Não havia argumentos ou posições concretas, apenas clichês retóricos e talking points aleatórios que, além de tangenciais à conversa, invariavelmente empregavam a lógica de que a melhor defesa é o ataque e ofereciam alguma variação da fórmula “mas e o Lula/PT/Haddad/PSOL/Dilma etc.?”. Eles estavam ali para produzir clipes, não para discutir.
É importante pensar nestes detalhes pelo seguinte. Se as pessoas vêm à sua fala para tumultuá-la, elas vêm de caso pensado para impor um certo enquadramento à situação; a melhor maneira de reagir é, portanto, ao mesmo tempo evitar este enquadramento e expor para o público presente sua lógica de operação.
Elas querem que você perca a compostura? Mantenha a calma, faça piadas, use o humor para desinflar o militantismo delas e expor o ridículo da situação.
Elas querem botar você na posição de alguém que defende o PT, a corrupção, a pedofilia, a drogadição? Responda com perguntas como: “qual é a relevância desta questão para esta discussão? a quem interessa reduzir o debate desta maneira? de qual assunto esta manobra serve para desviar o foco? a quem interessa dizer que ser contra x é automaticamente ser a favor de y e z? o que esta transformação de diferenças políticas em diferenças morais implica?”
Elas querem guerra? Exponha-as como pessoas cuja “guerra” não é real confronto de ideias, mas a mera espetacularização de um enfrentamento que serve para produzir material para manter um público cativo engajado, bem como para alavancar a carreira de subcelebridades de internet que depois trocarão sua visibilidade por capital político ou econômico –– normalmente, os dois.
Por último, chame a atenção delas e do público para o fato de que, em tempos de câmaras de eco radicalizadas, esse tipo de ação, uma vez divulgada, pode ter consequências que não se restringem aos lulz, à lacração e à mitagem nas redes, mas incluem ameaças à integridade física das pessoas por elas expostas. Se elas forem adiante, elas terão de admitir publicamente que estão assumindo estes riscos.
Em resumo: tente entender o que aquelas pessoas querem, e não só procure dar sempre alguma coisa diferente, mas tente especialmente deixar explícitos os mecanismos pelo qual elas tentam direcionar a interação para um certo resultado.
Pensar que quem criou aquela situação não o fez com o propósito de gerar um debate de fato, e que a verdade daquela interação não está nela mesma mas na possibilidade de sua mediatização, serve para esclarecer mais duas coisas. A primeira é que, se aquelas pessoas estão ali para performar a própria convicção, você não vai convencê-las de nada. Elas são um público que, pelo menos por ora, você não tem como alcançar; na melhor das hipóteses, você conseguirá plantar uma dúvida, e esta provavelmente virá muito mais do fracasso da performance que do que você disser.
A segunda é que, dado que elas terão todo o controle sobre como divulgarão o resultado, você também já perdeu o público delas. Salvo a possibilidade de que uma outra pessoa presente filme a interação e a divulgue com outro enfoque para outro público, portanto, seu público-alvo naquela situação são basicamente as outras pessoas da plateia.
Aqui entra uma coisa que venho repetindo desde o primeiro turno: eleitores de Bolsonaro foram a maioria nas eleições, mas bolsonaristas são uma minoria; uma minoria grande e altamente engajada, é verdade, mas minoria ainda assim. O diálogo com esta minoria será impossível durante muito tempo, logo não é uma prioridade imediata.
O mais importante hoje é isolá-la: criar um cordão sanitário à sua volta que imunize quem está exposto a seu discurso, diminua seu apelo, aumente o custo de aderir ou manter-se fiel a ele.
Na prática isto significa, sem condescendência, mas de maneira firme e sem meias-palavras, chamar este discurso pelo nome. Falar de sua dependência de bolhas cada vez mais fechadas e radicalizadas que conformam realidades cada vez mais divergentes não somente do mundo em que vive a esquerda, mas daquele em que vive a grande maioria das pessoas. Dizer que seus produtores e propagadores são aproveitadores que se alimentam da desatenção e da desinformação.
Expor o misto curioso de fanatismo e ironia cínica de seus líderes, que constantemente propagam “fatos” que serão em seguida negados ou defendem valores que não aplicam a si mesmos. Desenredar as ramificações práticas destes discursos, suas consequências no mundo real, e como as pessoas que reproduzem estas ideias estão se dessensibilizando em relação a elas.
Isso significa, por exemplo, mostrar como afirmar publicamente que o aquecimento global é uma conspiração esquerdista dá sinal verde para quem desmata e assassina indígenas, como impor uma única visão religiosa fatalmente resulta em violência religiosa, como impedir um debate sadio sobre homo e transsexualidade, em vez de fazer essas coisas deixarem de existir, expõe pessoas de carne e osso à violência física. Significa, ainda, lembrar que o argumento de autodefesa contra um risco maior (comunismo! corrupção! pedofilia!) sempre foi utilizado para desumanizar o adversário e justificar todo tipo de abuso.
Significa apontar, finalmente, que só existem duas posições subjetivas dentro de um discurso cujas consequências lógicas são a eliminação física de indivíduos e condições cada vez piores de reprodução social em geral: ou o otário que não vê que será sempre mais vítima do monstro que ajudou a alimentar, ou o oportunista que sabia o que estava fazendo e entrou nesta para se dar bem. Bucha de canhão ou farsante: a opção é essa, e há sempre um número muito maior dos primeiros que dos últimos.
Foi isto o que eu acabei dizendo quando passamos ao debate com a plateia. Um mal-estar tinha começado a me bater enquanto eu ouvia a resposta da Helena Hinke Dobrochinski Candido à minha fala. Havia qualquer coisa de extremamente indigno naquela situação toda, e por mais que eu estivesse ironizando e fazendo piadas, eu me sentia inevitavelmente rebaixado à indignidade daquele espetáculo.
Tendo resistido à tentativa deles de transformar uma discussão política numa questão moral, eu acabara me situando numa oposição política em relação a eles; mas aquilo implicava não apenas aceitava situar ideias que me parecem francamente abomináveis no mesmo nível de discussão, como não chegava a botar em questão o ridículo e a indignidade daquela interação. Foi quando me veio o estalo que, para tornar inteiramente explícito o que havia de errado ali, era preciso passar do terreno político para o ético.
Era preciso dizer com todas as letras o quanto aquele espetáculo era lamentável, o quanto era triste me deparar com pessoas que habitam um mundo tão distante do meu que o diálogo entre nós era impossível, e o quanto aquela situação me parecia uma consequência direta das ideias que elas sequer tinham coragem de defender diretamente ali: se elas estavam se comportando como pessoas horríveis, era porque aquelas convicções lhes autorizavam a comportar-se como pessoas horríveis. Não sei que efeito isto pode ter dito neles, mas foi o momento em que a plateia reagiu de maneira mais entusiástica.
E bom, a Finlândia é um país tão civilizado que até o tabloide que cobriu a história achou a situação lamentável. Mas ela pelo menos rendeu o neologismo “bolsonarri”, aproveitando que “narri”, em finlandês, significa “bobo da corte”.