Após ignorar manifestações contra Bolsonaro, Estadão agora diz que foram “muito significativas”

Atualizado em 1 de junho de 2021 às 8:10
O dia em que o Estadão não quis enxergar por medo de Lula

O Estadão teve um lapso de sinceridade nesta terça, 1, reconhecendo tardiamente aquilo que se recusou a informar no domingo: o Brasil odeia Bolsonaro, despreza e quer o genocida longe da presidência por motivos diversos, especialmente pelo descaso com a vida demonstrado nesta pendemia da covid.

Ok, seria digno não fosse o ato falho: o diário reconhece que os protestos dão força à candidatura de Lula, como se isso fosse motivo para não cumprir seu papel de informar o que acontece nas ruas.

Antes tarde do que nunca, diziam os antigos. Por essa máxima vale a passada de pó de arroz na cara que o jornal mostra em seu editorial desta terça.

Sobre usar Lula como desculpa para justificar o injustificável, nenhuma surpresa: alguém esperava algo diferente do Estadão?

Leia o editorial:

Foram muito significativas as manifestações do sábado passado contra o presidente Jair Bolsonaro, não somente em razão da dimensão – houve passeatas em quase todas as capitais e no Distrito Federal, além de cidades menores – e da numerosa participação, mas principalmente pela realização, em si mesma, do protesto.

Afinal, não é trivial ir às ruas para expressar descontentamento com o governo em meio a uma pandemia, que dá todos os sinais de um novo recrudescimento. Até agora, as ruas eram uma espécie de monopólio da militância radical bolsonarista, desde sempre à vontade para desafiar as orientações sanitárias para demonstrar seu apreço por Bolsonaro e sua hostilidade às instituições democráticas.

Já a oposição ao presidente, com a fundada preocupação de que aglomerações poderiam contribuir para a disseminação ainda maior do vírus, demorou a mobilizar os muitos descontentes com Bolsonaro; afinal, não era uma decisão fácil ir às ruas depois de passar meses criticando os bolsonaristas e o presidente por incentivarem ajuntamentos irresponsáveis. Como resultado dessa hesitação, os bolsonaristas investiram na narrativa segundo a qual as manifestações promovidas por eles – sem nenhuma resposta da oposição, salvo inócuos panelaços – provavam que o “povo” estava com o presidente.

Mas isso agora mudou. A detalhada exposição pública, na CPI da Pandemia, da irresponsabilidade do governo Bolsonaro na condução da crise certamente encheu muitos brasileiros de vergonha. Ao mesmo tempo, o presidente mais uma vez causou indignação ao participar ativamente de um comício no Rio de Janeiro em que a pandemia foi ignorada, coadjuvado pelo sorridente ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, símbolo da desídia na administração da pandemia.

Essa caracterização explícita do desprezo bolsonarista pelos brasileiros em geral parece ter sido a gota d’água que levou parte dos grupos de oposição a Bolsonaro a deixar de lado a prudência e convocar manifestações de rua.

Muito se dirá sobre os organizadores desses atos e suas motivações. Não se pode ignorar que o protesto do sábado passado serviu para dar força à campanha de Lula da Silva à Presidência, tão antecipada e fora de hora quanto a de Bolsonaro. Embora o chefão petista tenha silenciado a respeito da manifestação, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, deu o ar da graça, bem como dirigentes de partidos que orbitam o lulopetismo. Ademais, a maioria absoluta dos organizadores era de partidos e movimentos de esquerda, o que tende a reduzir a representatividade do protesto.

Mas seria um erro entender, a partir disso, que o antibolsonarismo seja uma exclusividade da esquerda. As pesquisas de opinião mostram que parte significativa da população rejeita Bolsonaro, e é lícito supor que, se não fossem as reticências sanitárias motivadas pela pandemia, muito mais cidadãos, de diversos credos políticos, poderiam se animar a participar de manifestações contra o presidente.

O mais importante, contudo, é constatar que os protestos da oposição tendem a marcar uma inflexão na atmosfera política. Para muita gente, o risco da continuidade do governo de Bolsonaro é maior do que o perigo representado pelo coronavírus, razão pela qual valeria a pena arriscar-se em manifestações de rua se isso causar problemas para o presidente. Exagerado ou não, esse ânimo é significativo do cansaço com a irresponsabilidade de Bolsonaro, não apenas durante a atual crise, mas praticamente desde a posse.

Tudo indica que, no momento em que o País corre o risco de uma nova onda de contaminações na pandemia, as ruas voltaram a ser a arena política nacional – o que vem se repetindo com frequência desde 2013. O embate entre o bolsonarismo e o antibolsonarismo, que antes estava restrito ao universo das redes sociais, a partir de agora poderá ser travado ao ar livre, com ou sem vírus.

Bolsonaro menosprezou os protestos da oposição, dizendo que “teve pouca gente nessa manifestação de esquerda” porque a polícia está “apreendendo muita maconha” e “faltou erva para o movimento”. A troça infantil trai um certo nervosismo.