Após sete meses, Damares não gastou um centavo com a Casa da Mulher Brasileira

Atualizado em 16 de agosto de 2019 às 16:08

Publicado na Agência Pública

A ministra Damares Alves (Valter Campanato/Agência Brasil)

Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca

Com R$ 13,6 milhões reservados no orçamento deste ano, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) de Damares Alves não gastou, até hoje, nenhum centavo com a construção da Casa da Mulher Brasileira, uma das principais iniciativas do governo federal para o enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil. Elogiado por especialistas pela segurança e rapidez de acesso das vítimas à rede de proteção social, o programa prevê a implantação de centros de atendimento multidisciplinares para mulheres vítimas de violência em 25 capitais brasileiras – atualmente, apenas cinco estão abertos.

Desde que assumiu, Damares vem afirmando que o combate à violência contra a mulher é prioritário em sua gestão, mas, apesar de contar com orçamento para o programa, já em abril ela declarou ser impossível para o ministério manter a Casa da Mulher Brasileira. Segundo a apuração da Agência Pública com base em dados do próprio governo federal, após mais de sete meses de governo Bolsonaro, nada foi executado do orçamento aprovado em 2018 com a participação da equipe de transição do atual presidente. Os repasses para manutenção – com verba de R$ 1,3 milhão reservada no orçamento – também não foram feitos. Se, a partir de agora, o governo quiser executar tudo que está orçado para este ano, seria preciso empenhar ao menos R$ 2,7 milhões por mês para construção dos espaços.

A Casa da Mulher Brasileira faz parte de um programa lançado por decreto em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff (PT) com o nome de “Mulher: Viver Sem Violência”. O objetivo era expandir a rede de serviços voltados para as mulheres vítimas de violência e promover a integração entre eles, através de ações para além da implementação das casas, como a ampliação da central telefônica Ligue 180 e campanhas de conscientização sobre o tema. A execução do programa ficou a cargo da Secretaria de Políticas para as Mulheres, à época com status de ministério – hoje é apenas um departamento dentro da pasta de Damares.

O projeto propõe que a vítima de violência disponha, em cada Casa, de Delegacia de Defesa da Mulher, Defensoria Pública, Promotoria, Juizado e Vara especializados, equipes de psicologia e assistência social, alojamento de passagem, brinquedoteca e serviços de promoção da autonomia econômica. Os recursos para construção da Casa partem da União, que também repassa verbas para a manutenção dos espaços durante seus primeiros 24 meses. Depois, município ou estado precisa assumir o gasto.

Esta não é a primeira vez que o governo federal descumpre o orçamento para a Casa da Mulher Brasileira. Em 2017, durante governo de Michel Temer (MDB), apesar de R$ 1,4 milhão empenhado para a construção de novas casas, nada foi liquidado, ou seja, efetivamente pago a quem executaria os serviços – o governo bancou apenas os gastos de manutenção das casas já construídas. Em 2016, último ano de Dilma Rousseff e início do governo Temer, apenas 13,32% do total orçado para a construção das casas foi gasto. Em 2018, a execução foi alta, de 75,76%, contudo o valor orçado já havia sido reduzido mais de 15 vezes: se inicialmente o governo teria mais de R$ 26 milhões para a construção das casas, o orçamento final foi o mais baixo da série, de apenas R$ 1,7 milhão.

Procurado pela Pública, o MMFDH informou que está reformulando o projeto da Casa da Mulher Brasileira para adequá-lo à “realidade orçamentária do país”. Explicou que pretende utilizar parte da verba destinada à construção de novas casas em um projeto menos custoso. A pasta comunicou também que modificará o decreto de instituição do programa para que seja possível “instalar casas em espaços cedidos ou locados” em vez de construí-las. De acordo com o ministério, hoje cada um dos centros de atendimento demanda R$ 13 milhões para ficar pronto e, na nova proposta, sairia a partir de R$ 823 mil.

Questionamos também o ministério sobre um pacto, lançado neste mês por Damares, para a implementação de políticas públicas de proteção para mulheres, assinado por representantes do governo – entre eles o ministro Sergio Moro – e do Legislativo e pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli. De acordo com o MMFDH, estão sendo criados grupos de trabalho sobre o tema, sendo a “jornada de trabalho de promoção da segurança e defesa da mulher uma das primeiras ações”, sem detalhamento do que a medida significa.

A construção das casas entrou como meta no Plano Plurianual 2016-2019, que determina as políticas públicas prioritárias para o governo federal no período. O documento estabelece que 25 capitais brasileiras devem recebê-las até o fim deste ano, mas atualmente apenas cinco estão abertas ao público: Campo Grande, São Luís, Fortaleza, Curitiba e Boa Vista – esta última enfrenta problemas estruturais, segundo o próprio governo de Roraima, mas ainda assim presta atendimento.

A Casa de Brasília, inaugurada em 2015, foi embargada parcialmente em 2017 e de forma definitiva em 2018 porque o prédio ameaçava desabar – o MMFDH informou que “está sendo construído um acordo para que a obra seja recuperada e os serviços continuem sendo prestados em outro local”. Na época da construção, o governo federal transferiu R$ 4,5 milhões para a estrutura. O convênio de manutenção do serviço previa um repasse anual de R$ 13,7 milhões. Neste ano, segundo a administração da Casa, nada foi repassado. Já a de São Paulo, apesar de pronta, ainda não foi inaugurada – de acordo com a prefeitura, a previsão é que comece a funcionar neste semestre.

“Um sonho” de atendimento

Quando a Casa da Mulher Brasileira foi idealizada, Eleonora Menicucci era ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Ela lembra que o projeto tinha o objetivo de cumprir uma das determinações do artigo 8º da Lei Maria da Penha: a “integração operacional” do Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública a áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação como diretriz de políticas de combate à violência doméstica e familiar. “Nós vimos que as redes não estavam respondendo à altura por causa do aumento das violências e as mulheres continuavam ainda com a via- crúcis em busca do serviço, então propusemos essa política”, explica.

Uma iniciativa de El Salvador serviu de inspiração: o Ciudad Mujer, projeto criado em 2011 pela advogada brasileira Vanda Pignato, ex-primeira-dama do país. O programa permitiu a abertura de centros que reúnem serviços públicos de atendimento às mulheres em áreas desde saúde a cooperativas de crédito – hoje, existem seis deles espalhados pelo território salvadorenho. No início de 2013, Eleonora Menicucci viajou a El Salvador para visitar os espaços acompanhada de Aparecida Gonçalves, à época secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, para conhecer o projeto.

A facilidade de acesso da mulher à rede de assistência reunida em um único espaço é “um sonho” para especialistas no tema, como Wânia Pasinato, consultora da ONU Mulheres, que há mais de 20 anos faz pesquisas em justiça criminal e violência contra a mulher. “A proximidade entre uma equipe psicossocial, a Delegacia da Mulher, a Defensoria Pública e o juizado faz com que pelo menos o trâmite inicial ocorra mais rapidamente. Isso dá mais segurança às mulheres”, explica a socióloga, pós-doutora pelo Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp.

Wânia destaca que a agilidade e abrangência do acolhimento são cruciais porque, quando as vítimas tomam a decisão de buscar ajuda institucional, “já passaram por muitos processos internos de dúvida, medo, insegurança”. Outro ponto importante é que o espaço integrado favorece o compartilhamento de informações entre os serviços. “Ela [a Casa] criou a possibilidade de que a rede fosse também uma estrutura de circulação dos documentos relacionados ao caso da mulher [atendida] e de informações relativas a esse caso. Produzir estatísticas, ter dados e criar indicadores é fundamental para que se possa entender melhor não só a violência, mas também onde estão ocorrendo as falhas, que são inegáveis, na resposta para as mulheres e na aplicação da Lei Maria da Penha.”

Campo Grande: primeira e referência

Em Campo Grande, onde fica a mais antiga e uma das únicas cinco casas abertas, o caso de Letícia*, de 33 anos, mostra como o programa funciona quando bem executado. No fim de julho, ela foi agredida com um soco pelo ex-marido, que havia ido até sua casa para buscar o filho do casal, de 4 anos. A violência física foi precedida por um longo período de ataques verbais e psicológicos que culminou na separação do casal.

Letícia, moradora de Campo Grande, procurou a Casa da Mulher na mesma noite em que sofreu a agressão. Passou pela triagem, foi atendida por uma psicóloga e de lá seguiu para a Delegacia da Mulher, onde registrou o boletim de ocorrência. Por último, foi encaminhada à Vara Especializada, que lhe concedeu uma medida protetiva contra o ex-companheiro. “Me disseram: ‘Tem que denunciar, tem muitas mulheres sofrendo violência porque não denunciam’. Explicaram tudinho para mim, me deixaram bem tranquila”, conta a dona de casa. A medida protetiva também tem cumprido seu papel. “Só dele não ficar me ligando, me mandando mensagem, vindo aqui na minha porta me ofender, para mim, já é um alívio”, diz.

Seguindo o modelo da época da implantação do projeto, ainda sob os auspícios da Secretaria de Políticas para as Mulheres, uma servidora do atual Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é responsável pela coordenação geral da Casa. Tai Loschi, que desempenha esse papel em Campo Grande, diz que a atribuição mais importante do cargo é organizar as reuniões mensais do colegiado gestor da Casa, formado por representantes da prefeitura, governo do estado, Polícia Militar e Patrulha Maria da Penha, além de delegada, juíza, defensora pública e promotora. “É uma reunião democrática e horizontal, porque aqui todo mundo tem suas diretrizes, mas temos que andar juntos. As reuniões do colegiado são justamente para afirmar a horizontalidade dos serviços”, explica. De acordo com ela, todas as decisões relativas ao local dependem da deliberação dos integrantes do colegiado.

A Casa da Mulher em Campo Grande é referência nacional na prestação do atendimento integral às mulheres vítimas de violência. De fevereiro de 2015, quando abriu, até o último mês de junho, foram registrados ali mais de 32 mil boletins de ocorrência, concedidas mais de 14,8 mil medidas protetivas e 49,3 mil atendimentos foram feitos pelo Ministério Público do estado. Neste ano, autoridades de Roraima – cuja capital já abriga uma Casa –, Piauí e Alagoas visitaram o serviço para observar como funciona.

Embora funcione há quatro anos e meio, a Casa ainda se mantém com dinheiro do governo federal. A prefeitura de Campo Grande precisava utilizar os aproximadamente R$ 9,5 milhões previstos em convênio até dezembro de 2016, mas precisou renegociar o prazo por quatro vezes, o que não implicou o repasse de mais verbas, segundo a própria prefeitura. Depois de junho de 2020, nova data-limite para execução dos recursos da União, o município deverá assumir os gastos com manutenção – limpeza, locação de veículos e alimentação para mulheres abrigadas, entre outros –, além das despesas com as quais já arca, como água, luz, telefonia e recursos humanos.

Desde maio, a Casa tem recebido apoio da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) através do Observatório sobre Violência contra a Mulher. Em fase de implantação, ele é fruto de um acordo de cooperação com a prefeitura de Campo Grande e pretende monitorar e analisar dados sobre violência contra mulher no município, promover ações de prevenção e formação para gestores, pesquisadores e comunidade. Segundo as professoras Ynes da Silva Félix e Jacy Correa Curado, coordenadora e vice-coordenadora do Observatório, para continuar “sendo referência e exportando know-how em tecnologia social de atendimento à violência contra a mulher, a Casa “deve ser alvo de investimento e boa gestão pública”, como vem ocorrendo em Campo Grande