Após vazamento: “Se tornou ainda mais difícil conversar com alguns colegas juízes”. Por Ana Carolina Santana

Atualizado em 23 de junho de 2019 às 19:05
Sérgio Moro (Evaristo Sá/AFP)

Publicado originalmente no site Justificando

POR ANA CAROLINA SANTANA, graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe (2012); Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Professora convidada da Pós-Graduação da Faculdade de Integração do Sertão; Juíza de Direito do TJPE; associada ao IBCCrim

Este escrito não tem a pretensão de discutir teses jurídicas, ele é apenas um desabafo.

Após os vazamentos do The Intercept, se tornou ainda mais difícil (e porque não dizer impossível?) conversar com alguns colegas. E quando me refiro a colegas restrinjo-me aos da área jurídica, mais especificamente aos meus colegas juízes.

As reações foram diversas. A publicação da troca de mensagens privadas entre os protagonistas da Lava Jato e aquele que, não deveria ser um protagonista, mas se tornou o maior deles, o juiz, foi assunto nos grupos de Whatsapp e nos encontros de amigos. Para meu espanto, não poucos colegas defenderam veementemente essa postura inquisitorial.

Isso me levou a uma reflexão dolorosa, consistente na tentativa de compreender se a defesa da violação ao ordenamento jurídico era justificável no caso concreto da Lava Jato ou se aquelas pessoas defendiam, de fato, a aplicação do princípio inquisitorial para todo sistema jurídico brasileiro.

A conclusão? Não é a mais otimista, e por isso eu espero estar completamente equivocada.

De início comecei a observar que a linguagem utilizada pela maioria dos colegas juízes está eivada de signos linguísticos relacionados à guerra. Não sem ajuda do próprio Judiciário, enquanto instituição e suas famigeradas “varas de combate”. O combate, a trincheira, o inimigo, a batalha, a própria guerra, entre outros, são exemplos. Envergonha-me perceber que muitos colegas não tem o necessário discernimento acerca da função contra majoritária do Poder Judiciário. Isso deveria ser pré-requisito para o ingresso na magistratura. Não são poucos os que se colocam como combatentes da criminalidade, legitimando o crescimento do Estado Policialesco. Afinal de contas, em uma guerra o inimigo deve perder.

Nota 1: dizer que a minha função enquanto juíza não é combater a criminalidade não significa que eu seja a favor do crime. Acredito que essa nota seja importante diante do nível ao qual chegamos, onde algumas aglomerações de juízes tomam de empréstimo o slogan que, até então era muito utilizado pela polícia: quem não gosta de justiça é bandido.

As competências e atribuições de cada instituição brasileira estão expressamente previstas na Constituição Federal. O enfraquecimento de uma dessas instituições e a consequente deficiência em desempenhar seu papel de forma eficiente não autoriza a usurpação de função. Em suma, às polícias, militar e civil, cabe o policiamento ostensivo e a investigação de fatos supostamente criminosos, respectivamente; ao Ministério Público a função acusatória; aos advogados e defensoria pública a defesa do acusado e; ao juiz, equidistante das partes, cabe a análise das hipóteses acusatórias sustentadas pelo promotor e a refutação da defesa a essas hipóteses, com base nas provas produzidas legalmente no processo, sem conceitos pré-formados, sem enxergar, profissionalmente, aquele que senta no banco dos réus como um bandido, um inimigo.

Nota 2: digo profissionalmente porque exigir esse olhar de forma pessoal é impossível. Cada um tem sua própria prisão sem grades e muitas pessoas, ao impingir sofrimento ao outro, sentem uma espécie de prazer pessoal. Daí resulta que o respeito aos limites estritos da lei é cada vez mais imprescindível para evitar esse macabro exercício por aqueles que, agem em nome do Estado e, infelizmente, ainda não descobriram sua própria humanidade.

No caso da Lava Jato, a Polícia Federal possuía toda a estrutura necessária para investigação das condutas criminosas. De igual forma, o aparato institucional do Ministério Público Federal supera em muito o da mesma instituição a nível estadual. Nesse sentido, a condução da operação por aquele que deveria estar distante das partes não possuía justificação na ineficiência dos órgãos investigativos. Aqui, muito provavelmente, a interferência foi política. E, nesse ponto, partidarizaram o Direito.

Justificar violações à Constituição e às leis na importância política do processo para o país é voltar ao absolutismo. Neste, o rei decidia o que era melhor para o seu povo e assim agia sem nenhum limite ao seu poder. Digamos que a República de Curitiba se tornou Versalhes e a Constituição Federal passou a ser Sérgio Moro, em analogia ao reinado de Luís XIV.

Nota 3: criticar a operação Lava Jato não me coloca na posição de defensora do crime organizado, muito menos de apoiadora do fim da citada operação. Entendo que a Polícia Federal deve investigar todos os delitos relacionados à administração pública que sejam de sua atribuição e o Ministério Público Federal, se convencendo (legalmente) dos elementos informativos, deve oferecer denúncia. Por fim, acredito que um pronunciamento judicial é legitimado por sua obediência ao ordenamento jurídico pátrio e não pelo consenso da maioria.

Mas, a minha desesperançosa conclusão não é que os colegas defendem o sistema inquisitório, onde as funções de julgar e acusar se confundem, apenas quanto aos processos da Lava Jato. A defesa deles é pautada na premissa de que o juiz deve combater a criminalidade. Desse modo, todo processo penal deve ter sua sentença condenatória, ou falharão na função de combater o crime. Custe o que custar, porque se existem direitos para o réu, também existem os direitos da vítima e esta está numa “melhor” posição de ser defendida e protegida. Consequentemente, criminalizam o exercício da advocacia e se tornam verdadeiros defensores das vítimas. Quantas vezes já ouvi a frase “e se fosse com você? ”. Eu não estou isenta de ser vítima de delito (e já fui) mas, se fosse comigo, eu incorreria em impedimento legal para julgar a causa. E isso é pautado na imparcialidade do juiz que não pode se colocar no lugar das partes, ou seja, deve agir sem sentimentalismo.

E por falar em sentimentos, desenvolveu-se uma teoria para justificar a flexibilização das garantias penais e processuais penais. Chamada de garantismo integral, essa teoria traz, ao processo, a vítima, e busca justiça por ela, que sempre foi esquecida pelo processo, apesar de ser a que mais sofreu com o crime, segundo os defensores dessa teoria. Pelo que entendi, essas flexibilizações de direitos são justificadas na máxima de que “o coração tem razões que a própria razão desconhece”. Incorporada ao processo penal, que possui forma trigonal, a vítima estaria ao lado do Ministério Público, creio eu, e entre vítima e acusado como seria razoável a um julgador escolher o acusado? (Que falta de sensibilidade!). Considerando que não há argumento jurídico válido, ao menos no ordenamento jurídico brasileiro, para a teoria em questão, compreendo que se trata de sentimentalismo. Desse modo, também sou solidária a dor de todas as vítimas de crimes, já fui vítima de crime, mas entendo que esse sentimento não deve comprometer meu julgamento.

A minha defesa é pela racionalidade do sistema, ainda que, na minha concepção de justiça, ele me pareça algumas vezes injusto.

O que todo esse movimento de “lei e ordem”, de “justiçamento”, de “punição exemplar” tem nos causado é gravíssimo. O sistema jurídico está perdendo sua racionalidade. O julgamento moral está predominando sobre o julgamento jurídico. O apoio da população legitimando aberrações jurídicas tem pressionado os julgadores a decidirem de modo a não contrariar a opinião pública. Enfim, a ideia incutida no imaginário popular é a de que o judiciário é o salvador do povo contra a criminalidade, confundem, literalmente, a toga com a capa do Batman. E isso tem repercutido nas decisões judiciais.

E tem mais. A irracionalidade na interpretação e aplicação da lei tem inviabilizado o próprio debate jurídico, que deveria ser técnico, mas se torna político partidário. Decidir contrária, por exemplo, ao entendimento (não vinculante) do STF acerca da execução provisória da pena, após o julgamento em segunda instância, me impõe automaticamente a etiqueta “de esquerda” ou, como os colegas costumam falar “esquerdista”. Estudar criminologia crítica me coloca a face mais solitária da magistratura. Defender o espírito constitucional me exclui de algumas reuniões promovidas pelos colegas. Direitos Humanos, então, é um verdadeiro tabu!

Enfim, o Direito precisa voltar a ser Direito. Precisamos retomar a racionalidade do ordenamento jurídico. Cumprir as leis e a Constituição é o primeiro, para não dizer o único, passo que nós juízes devemos dar.

Nota Final: parafraseando Clarice Lispector, essa solidão, a mim imposta diante dos meus posicionamentos constitucionalistas e pela defesa da racionalidade do sistema jurídico, me serve de companhia. Para que eu tenha a coragem de me enfrentar porque, nesse caso, para os colegas, eu estou com o nada. Entretanto, me sinto plena, plena de tudo, principalmente no cumprimento do juramento feito ao ingressar nos quadros da magistratura “(…) manter, defender e cumprir a Constituição (…) respeitar as leis (…)”.