Aprenda a estudar Lei-Seca! E nós fugiremos para as montanhas! Por Lenio Streck

Atualizado em 17 de junho de 2021 às 11:01

Publicado na ConJur

Por Lenio Luiz Streck

A coluna de hoje é uma coluna do tipo “o que mais há a dizer neste caos que virou o concurseirismo no Brasil”?

Peço desculpas. De dez assessores e auxiliares de minha equipe, nove disseram “Professor, não gaste pólvora em chimango”. O senhor já escreveu tanto sobre isso, disseram… disseram que simplesmente não vale a pena.

Acho que minha equipe não deixa de ter lá sua razão. Mas tenho um certo dever republicano de chamar as coisas pelos nomes, já que li o Crátilo. Tenho um dever epistêmico de dizer que o rei está nu. E um dever comigo mesmo de não deixar morrer meu otimismo metodológico. É um “como se”. Como se fosse valer a pena.

Teimoso, pois, volto ao tema. Esse meu dever cívico de alertar contra as práticas negacionistas leva-me a falar alguma coisa. Em homenagem a todos que levam a sério o estudo do Direito no Brasil.

Parece que aqui temos um ponto de corte. Mais longe que isso é impossível ir. Está certo que há livros desenhados, mastigados, sem as partes chatas etc. Está certo que o “estilo” coaching já vigora de há muito. Mas o que passo a relatar parece ter passado de todas as medidas, para além do sushi jurídico e do Balão Mágico. Para além dos limites do fim dos tempos.

Com efeito. Um cursinho de preparação tem a seguinte chamada:

“Liberte-se”. Aí aparece as palavras doutrina e vídeo-aula com um xis perpassado. No meio, a figura de um homem com a camisa com símbolo de flash (tipo super herói) e escrito abaixo: “LEI-SECA EXPRESS”. E mais abaixo: “Aprenda a estudar Lei Seca”.

No texto explicativo do curso: “Você sabia que a sua prova de concurso vai cobrar a literalidade da lei? Ou seja, o que a gente chama de lei-seca. Você não precisa de doutrina e vídeo-aula e eu quero te ensinar a se libertar (sic). Meus alunos aprenderam a dominar esse estudo…”

Sim, sei que é um curso pequeno. Mas quantos desses existem por aí? Qual é o sentido simbólico (porque é isso que importa aqui) de algo desse tipo? O ponto não é o “professor” ou coach que vende isso.

São os concursos que forjam essas demandas. Depois nos queixamos quando um desembargador de Pernambuco vai para aposentadoria e no discurso de despedida, saúda “as forças armadas” (sem o s), com um adendo fenomenal: “Por mais que tenha tentado, nunca consegui intimidade com a erudição”. Pois é. Imaginem se um esculápio dissesse “nunca consegui intimidade com a erudição com a medicina”…

Sigo. O dono do Curso de Lei Seca (sic) apresenta dados que confirmam a sua “tese”. Mostra que na última prova para concurso de juiz do Pará, 84% das questões foram de lei e jurisprudência; de doutrina, apenas 11%; no Rio de Janeiro, 69% das questões teriam sido lei-seca; no MS, 89% das questões foram de lei-seca e jurisprudência. E assim por diante.

Se verdadeiro o que consta na publicidade, a questão que se coloca é: concursos são decoreba de texto legal? Talvez por isso há tanto coach de concurso vendendo macete para decoreba. Até por música. Daí minha pergunta: queremos um país no qual o Direito seja uma questão de decorar leis? Que os membros que fazem parte da prática jurídica sejam isso?

Venho falando disso há décadas. E eis o “paradoxo Tostines”: os concursos atendem a demanda das faculdades e cursinhos ou as faculdades atendem às demandas dos concursos? O ovo ou a galinha? Pois é. Não sairei do clássico problema, mas uma coisa eu digo: no Direito, alguém colocou esse ovo. E vamos chocando todos os dias.

Há uma indústria “cultural” por trás disso tudo. Mas parece que poucas pessoas estão interessadas em mudar esse quadro. Por que será, pois não? A resposta cínica vocês já podem imaginar.

Dia desses, quando ainda se viajava de avião, falei com um ministro do STJ no entremeio de um congresso na EMERJ, dizendo-lhe: Ministro, se alterarmos os concursos públicos (e o exame da Ordem), mudaremos o ensino jurídico em cinco anos. Poderíamos fazer profundas alterações.

Sigo, perguntando: devemos desistir? Ou fomos vencidos pelo cansaço?

Ora, qual é o busílis disso tudo? Essa é uma coisa que se retroalimenta. Operadores jurídicos que passam em concursos que cobram esse tipo de coisa e se transformam depois em professores a ensinar futuros operadores que terão estudado para a aprovação em concursos que cobram esse tipo de coisa… e por aí vai. Sempre lembro do poema francês sobre o Capitão Jonathan e os ovos dos pelicanos brancos, que geravam pelicanos brancos… Sem quebrar os ovos, não se faz omelete (Cela peut durer três longtemps; Si l’on ne fait pas d’omelette avant).

E o Direito — o critério que resolve nossos desacordos e segura uma democracia — acaba virando… decoreba de texto de lei e de texto-de-súmula. A ponto de, no Carf, uma portaria estabelecer que súmula do próprio órgão tem efeito vinculante.

No fundo disso, há muito temos: (i) uma dogmática complacente que entra “no jogo”, (ii) uma prática que não sabe o que é um princípio jurídico e aposta no livre convencimento e (iii) uma falta de cuidado e rigor epistêmico com os conceitos sem os quais o Direito nem existe.

E assim vamos. Ou não vamos.

Espero que meus assistentes estejam errados. Mas já não sei. Vale a pena ainda?