Foi adiada para abril, para depois da viagem do presidente Lula à China, a decisão sobre o arcabouço fiscal que substituirá, por lei complementar, o teto constitucional de gastos. A decisão de adiar a proposta do governo me parece correta. Por que tomar de afogadilho, a portas fechadas, decisão de natureza estratégica, que afetará a política fiscal ao longo dos próximos anos?
Recorde-se que o governo está dando sequência a algo muito importante aprovado na PEC de transição. Ali, por sugestão e redação do próprio ministro Haddad, como ele mesmo me disse, foi estabelecido um dispositivo inteligente que – ponto nem sempre notado –efetivamente desconstitucionalizou o arcabouço fiscal, ao prever que o teto de gastos deixará de existir depois que for aprovada a lei complementar estabelecendo um novo marco fiscal. É a elaboração dessa lei complementar que está em discussão.
Não tenho conhecimento da alternativa ou alternativas elaboradas no Ministério da Fazenda, pois tudo foi conduzido até agora sob segredo. Mas a matéria em si mesma não requer sigilo. Melhor seria que se inaugurasse debate aberto sobre o assunto, antes do presidente Lula encaminhar proposta ao Congresso.
Do ponto de vista teórico, existe sempre um trade-off, um dilema entre flexibilidade e credibilidade. A busca de credibilidade leva a fórmulas mais rígidas, sacrificando a liberdade da política econômica. Inversamente, regras muito flexíveis tendem a não gerar confiança. Isso vale não só para a área fiscal, mas também para as áreas monetária e cambial.
Admitindo-se que seja necessário ou aconselhável estabelecer regras ou âncoras, convém seguir modelos rigorosos e buscar a credibilidade a todo custo? Não parece razoável. Estou entre aqueles que preferem dispositivos flexíveis, que não engessem a política econômica. O futuro é sempre incerto e fixar regras rígidas acaba não sendo recomendável na prática. Melhor deixar margem para adaptações e revisões. A confiança pode ser criada e fortalecida ao longo do tempo, com a execução responsável das políticas públicas.
No campo das contas públicas, o papel de uma regra flexível é ajudar na criação de confiança, sem impedir, entretanto, que a política fiscal desempenhe seu papel como instrumento central da política econômica. Arcabouço, não calabouço fiscal.
No caso do Brasil, a flexibilidade é particularmente importante, uma vez que é difícil imaginar um cenário de recuperação da economia e distribuição de renda que não passe por uma política fiscal ativa, que inclua ampliação do investimento do investimento público e das transferências e outros gastos sociais. O arcabouço fiscal que agradará o mercado financeiro e o Banco Central, que corresponda a suas expectativas e preconceitos, dificilmente será compatível com um programa de desenvolvimento econômico e social. Não se deve adotar regras que o mercado financeiro aplauda como “robustas” para depois descobrir, ao longo dos anos, que a política fiscal não pode isso, não pode aquilo, e ficou basicamente manietada e imobilizada.
A minha preferência, assim como a de muitos outros economistas, no Brasil e no exterior, é por regras flexíveis, simples e que não sejam pró-cíclicas, como são alguns tipos de âncoras. Em outros termos, melhor adotar regra ou arcabouço fiscal facilmente inteligível que dê margem à adoção de políticas anticíclicas sempre que necessário, permitindo que a política fiscal seja mais restritiva em períodos de aquecimento excessivo da economia e mais expansiva em períodos de recessão ou estagnação.
Um arcabouço fiscal desse tipo poderia tomar o seguinte formato. Seriam definidas, com certa antecedência, metas anuais para o resultado primário do governo na forma de uma banda, com distância ampla entre piso e teto. A lei preveria que, em épocas de recessão ou crescimento lento, o resultado ficaria próximo do piso; em épocas de crescimento elevado, próximo do teto. A regra não seria, assim, pró-cíclica.
Evitar pró-ciclicidade é importante. Quando a economia cresce mais vigorosamente, as receitas públicas sobem e diminuem certos tipos de gastos, como o seguro-desemprego. O déficit se reduz, ou o superávit aumenta, de forma automática. O inverso ocorre quando a economia desacelera. O arcabouço fiscal teria que ser desenhado com esses efeitos automáticos em mente. E deveria deixar, além disso, certa margem para uma política fiscal ativa, capaz de proporcionar impulso ou contração fiscal, conforme a situação da economia.
Uma banda atenderia esses requisitos. Fixar uma meta única para o resultado primário já não. Em época de recessão, por exemplo, o resultado primário diminuiria automaticamente, distanciando-se da meta fixada. O governo, para cumprir o estabelecido, seria levado a cortar gastos ou aumentar tributos, reforçando o movimento recessivo da economia. Um erro seria, por exemplo, fixar um horizonte para zerar o déficit primário. Se a economia continuasse crescendo pouco ou nada, esse tipo de objetivo conduziria à recessão e ao aumento do desemprego.
Uma banda para o resultado primário tem algumas outras vantagens como alvo da política fiscal. Primeiro, o superávit ou déficit primário é uma variável conhecida, com longa série histórica. Segundo, é uma variável observada, e não construída por modelos, como seria por exemplo o resultado primário estrutural ou ajustado para excluir efeitos cíclicos. Terceiro, é um resultado sobre o qual a política fiscal tem razoável controle, diferentemente da dívida pública ou do déficit fiscal total, mais sensíveis a outros aspectos da política econômica e a variáveis fora do controle governamental.
A simplicidade da regra é outra vantagem. Um arcabouço complexo, com muitos dispositivos, cláusulas de escape e gatilhos, dificultaria a compreensão da proposta e o acompanhamento da sua execução. Seria, também, mais fácil desfigurá-lo durante a tramitação no Congresso, pois a complexidade abriria a porteira para todo tipo de ideia extravagante.
Todo arcabouço deve prever também normas para o caso de descumprimento das regras. O que aconteceria se a regra aqui proposta fosse descumprida? Também nesse ponto seria preferível adotar procedimentos simples. Em caso de resultado fora da banda estabelecida, a Fazenda enviaria documento detalhado ao Congresso, justificando o desvio, a exemplo do que faz o Banco Central, em carta à Fazenda, quando a inflação escapa da banda no regime de metas para a inflação. O ministro da Fazenda, assim como deveria fazer o presidente do Banco Central, compareceria trimestralmente ao Congresso para dar explicações e responder a questionamentos sobre a condução da política e o cumprimento da meta.
O arcabouço proposto seria flexível demais? Não creio. Afinal, pergunto, por que o regime fiscal teria de ser mais rígido do que o monetário? A política fiscal deve, em princípio, ter o mesmo tratamento que a monetária. Isso facilitaria inclusive a harmonização das políticas fiscal e monetária, desejada pelo ministro Haddad. O essencial é que a regra ou regras sejam razoavelmente flexíveis, simples e fáceis de comunicar.
O desafio é conferir alguma previsibilidade à política fiscal e ganhar confiança, sem perder o essencial, isto é, a flexibilidade para acionar programas sociais, os investimentos públicos e a reforma tributária. A economia brasileira experimenta uma estagnação que já dura dez anos. Continua a ser um dos países mais desiguais do mundo.
Alguém imagina que será possível redistribuir renda sem lançar mão de políticas de gasto e tributárias? Alguém imagina que a retomada virá da restauração da confiança na política econômica e dos efeitos dessa restauração sobre o consumo e o investimento do setor privado? A maior confiança poderia no máximo ajudar, reforçada pela suavização da política monetária.
A liderança tem que partir do Estado, único agente capaz de lançar e coordenar o esforço de retomada econômica e distribuição de renda. A política fiscal ativa constitui uma alavanca essencial que, coadjuvada pela mobilização dos bancos públicos e pela revisão da política monetária, poderá realizar os objetivos tantas vezes adiados de tirar a economia do marasmo e criar um país mais justo.
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