Argentina: como a “religião” do peronismo está prestes a chutar o “gestor” Macri. Por Maringoni, de Buenos Aires

Atualizado em 27 de outubro de 2019 às 11:50
Cartaz de festa de fim de campanha peronista. É sintomático que o personagem em destaque seja Cristina e não Alberto. Foto: Reprodução

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O fim do populismo está chegando ao fim. Este poderia ser o resumo das turbulências que cortam pelo menos três países latino-americanos – Argentina, Chile e Equador – neste final de outubro.

Maurício Macri, Sebastián Piñera e Lenin Moreno foram saudados, a partir de 2015, como os responsáveis por encerrar o ciclo de governos de centroesquerda no continente, abrindo um novo tempo de políticas econômicas realistas, conectadas com o mercado e que promoveriam crescimento acelerado.

No dia das eleições gerais argentinas, os três estão nas cordas. No Uruguai, a tentativa é a de se manter a Frente Ampla no poder pela quarta vez consecutiva, desde 2005.

EMBORA O PROCESSO CHILENO seja o mais exuberante, com multidões tomando o centro de Santiago e desafiando as forças armadas, a virada mais imediata acontece do outro lado da fronteira. Alberto Fernández e Cristina Kirchner devem vencer com diferença acima de 15 pontos percentuais, possivelmente no primeiro turno.

Em um país que enfrenta uma inédita queda da atividade econômica, o superdomingo – expressão de Mario Wainfeld, colunista do Página 12 – resultará na mudança de metade dos deputados federais e de um terço dos senadores, bem como dos governos das províncias de Buenos Aires, La Rioja e Catamarca, além da prefeitura da capital. Caso eleita vicepresidenta, Cristina chefiará o Senado, pelas leis locais.

A votação se dá em urnas convencionais e o voto é em cédulas de papel.

O economista Fernando Porta, da Universidade Nacional de Quilmes. Foto: Gilberto Maringoni/DCM

Ao mesmo tempo, é pouco provável que a virada econômica seja radical. “Estamos em um país muito diferente daquele encontrado por Nestor Kirchner, em 2003”, sublinha Fernando Porta, coordenador do doutorado em Desenvolvimento Econômico na Universidade Nacional de Quilmes.

Em suas palavras, embora os sinais da crise fossem mais evidentes naquela época – com a conversão forçada de dólares e perdas imensas para a população – agora os instrumentos de política econômica enfrentam restrições maiores. Um exemplo é o empréstimo de US$ 56 bilhões do FMI, que impõe severas contrapartidas à autonomia do orçamento federal.

A PREVISÍVEL VITÓRIA da oposição neste domingo não veio pela força da gravidade. Pelo menos desde o início do ano, com destaque para as primárias de agosto, houve um intenso trabalho de reunificação de dezenas de facções do peronismo. O destaque – reconhecido por todo o espectro político local – foi a hábil movimentação de Cristina Kirchner, ao se colocar como coadjuvante em uma chapa na qual teria todas as condições de encabeçar.

Acossada por perseguições judiciais – que poderiam repetir o infortúnio de Lula – ela resolveu deixar o papel principal, ao mesmo tempo em que impediu uma possível impugnação da chapa. Além disso, reduziu atritos junto ao centro político, que a acusa de autoritária.

A ARTICULAÇÃO DA EX-PRESIDENTA trouxe à cena principal Alberto Fernández, ex-chefe de Gabinete presidencial entre 2003 e 2008. Com atuação mais moderada e próxima ao Papa Francisco, a candidatura de Alberto teve outra marca.

Foi a de enfraquecer a postulação de Roberto Lavagna, ex-ministro da economia de Nestor Kirchner (2003-07) e responsável pela renegociação forçada da dívida externa, em 2005. A medida foi crucial para dar fôlego econômico ao país, num momento em que Buenos Aires perdia acesso ao mercado internacional de crédito.

Some-se a isso a reunificação em curso das duas centrais sindicais peronistas – a CTA e a CGT – cindidas desde o governo de Carlos Menem (1989-99), que aplicara a ferro e fogo o modelo neoliberal, com privatizações e desnacionalizações selvagens.

O peronismo é mais que um movimento político. Tornou-se fenômeno cultural. Nas livrarias há até obras infantis, como essa imitação de “Onde está Wally?”. Foto: Reprodução

O PERONISMO É UMA FORÇA POLÍTICA cuja lógica só é plenamente entendida se sairmos do terreno estrito da objetividade política. Correntes de direita e de esquerda têm lugar em suas fileiras, nas quais podem ser catalogadas pelo menos duas dezenas de facções.

“O peronismo se tornou independente do próprio [Juán Domingo] Perón”, sublinha o economista Fernando Porta. Tornou-se quase um estado de espírito.

No recém-lançado “O que é o peronismo?”, o antropólogo Alejandro Grimson assim o define:

“[O peronismo] é um movimento, é um partido, é um sentimento. É de direita e de esquerda. É pragmático e ideológico. É revolucionário e conservador. Para muitos, é o símbolo da inclusão e ascensão social de milhões de trabalhadores; para outros, representa o maior obstáculo ao desenvolvimento argentino. O peronismo é a identidade política mais persistente do país e, portanto, um enigma controverso e emocionante”.

Entranhado profundamente na alma nacional, o peronismo define um sentimento de pertencimento coletivo, em especial nos momentos de crise. “No fundo, é um espaço de luta política”, completa Fernando Porta.

Desde a sexta (25) não há mais atos, divulgação de pesquisas ou pronunciamentos públicos de candidatos. Foto: Gilberto Maringoni/DCM

DIANTE DE UM GOVERNO que aprovou – como no Brasil – reformas trabalhistas e previdenciárias, o peronismo ressurge como difuso sentimento de defesa popular. E há que se ressaltar, sempre concretizado na figura de um líder capaz de sintetizar essa busca de vontade coletiva.

“Talvez Cristina seja, depois de Perón, a mais importante liderança histórica do peronismo”, afirma Porta.

Maurício Macri entrou na cena política em um momento de crise. Em 2014, a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a justeza da demanda dos chamados “fundos abutre” sobre o cancelamento unilateral de US$ 82 bilhões da dívida argentina por parte de Nestor Kirchner, nove anos antes.

A arbitragem internacional colocou Buenos Aires contra a parede e a gestão de Cristina enfrentou turbulências fortes.

Foi aí que o milionário, empresário de sucesso e prefeito da capital iniciou sua campanha, com um discurso que combinava eficiência, sucesso pessoal e capacidade de empreender. No Brasil, ocuparia o lugar de um João Dória, atual governador de São Paulo.

Economist de 26 de novembro de 2015: o admirável mundo novo de 4 anos atrás virou vinagre. Foto: Reprodução

Foi aí que, em 26 de novembro de 2015, a revista britânica “Economist” o saudou com a manchete “O fim do populismo”. E emendou: “Vitória de Maurício Macri pode mudar seu país e a região”.

As urnas quatro anos depois indicarão o que o povo achou dessa mudança.

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