
“Milei é o espelho de uma Argentina que está em decadência, em declínio político e social, o espelho de uma sociedade em decomposição do ponto de vista econômico e social, na fragmentação dos partidos”, avalia Hugo Quiroga, professor de Ciência Política da Universidade Nacional de Rosário.
Para o cientista político, não havia fatalismo e o resultado das últimas eleições presidenciais argentinas surpreendeu. Se a eleição parecia incerta, os próximos rumos, ainda mais. “Há um manto de incerteza e de incógnita que se abre com este novo governo.”
A começar pela inflação, cujo próprio líder de extrema direita já reconheceu que não vai conter. Não é um clima de paz social que se anuncia no país vizinho, a julgar pelas privatizações prometidas na campanha, como da companhia aérea do pais. “No caso da Aerolíneas (Argentinas), há seis sindicatos, que se opõem. Então vai haver oposição e resistência. Não há nada firme que se possa dizer ou assegurar que vai ocorrer”, afirma Hugo Quiroga.
Se, como o pesquisador descreve, as propostas de Milei até agora foram “abstratas” demais, seu governo já se inicia com um erro: o convite a Bolsonaro para sua cerimônia de posse. “Milei não deveria ter convidado Bolsonaro, mas tem que seguir os protocolos e buscar melhorar as relações com o Brasil, convidando apenas o presidente Lula.”
“O Brasil é um país com um PIB muito maior que a Argentina e tem menos a perder que a Argentina.”
Em entrevista ao Diário do Centro do Mundo, o cientista político analisa o resultado das eleições, as perspectivas para o Mercosul e as transformações que o novo político já provocou, antes mesmo de assumir o cargo de presidente.
Milei não deveria ter convidado Bolsonaro, mas tem que seguir os protocolos e buscar melhorar as relações com o Brasil, convidando apenas o presidente Lula.
DCM: Como você avalia o resultado das eleições presidenciais argentinas?
Hugo Quiroga: O resultado das eleições presidenciais argentinas foram surpreendentes porque ninguém pensava que Javier Milei, uma pessoa sem estrutura partidária, com pouca trajetória política – dois anos, tivesse um resultado tão alto; 56% dos votos. Que não apenas triunfasse, mas que a diferença em relação ao candidato Massa fosse de doze pontos.
Então isso é algo que surpreendeu a todos, essa porcentagem tão alta, inclusive ao próprio candidato Milei. Ele é o candidato a presidente mais votado na Argentina em 40 anos, primeiro foi Alfonsín com 52%, depois Cristina Fernandez Kirchner com 54% e agora Milei.
DCM: Qual é o sentimento predominante na Argentina depois do resultado eleitoral?
Hugo Quiroga: O sentimento que domina é, por um lado, de assombro. Deixou o conjunto dos dirigentes políticos desconcertado, aos governantes, a todos os setores opositores, menos provavelmente o grupo de dirigentes que segue Macri e Bullrich, que ficaram do lado de Milei.
Houve muita euforia no dia das eleições. Em três dias depois das eleições, houve euforia nas partes que mais votaram, em Córdoba e Buenos Aires. Em muitos casos, houve sentimento de esperança. Pode-se abrir uma etapa de incerteza.
DCM: As propostas de Milei podem resolver os problemas que a Argentina atravessa?
Hugo Quiroga: Suas propostas sempre foram muito abstratas, principalmente no plano econômico, que é o que ele domina como economista, com algumas ideias um pouco extravagantes, como a dolarização e o fechamento do Banco Central. Mas nunca houve uma metodologia concreta para conduzir essas medidas radicais. Então é complicado se pode ou não resolver. Em todo caso, o que podemos dizer com clareza é que terá dificuldades porque os problemas estruturais na Argentina vêm de longo prazo. Alguns dos problemas superam os 40 anos de democracia.
DCM: Quais serão as consequências econômicas e sociais do governo Milei?
Hugo Quiroga: Não é fácil dizê-las, fazer uma previsão porque ainda não são conhecidas. Conhecem-se os enunciados das propostas, mas não as propostas concretas. Sem dúvida, pode-se imaginar que o fechamento do Banco Central pode gerar problemas e que a dolarização vai gerar problemas.
Há problemas imediatos. Milei tem diante dele o problema da inflação. O tema da inflação, que tem consequências sociais e econômicas, porque ele já disse num programa de TV que a inflação vai seguir avançando nos meses de fevereiro e março, um cenário de alta inflação. Isso traz problemas econômicos para todos. Há um manto de incerteza e de incógnita que se abre com este novo governo.

DCM: Quais impactos de uma eventual política de privatizações como anunciou Milei podem ser provocados?
Hugo Quiroga: Ele falou em privatizar a televisão pública, a rádio pública, os meios de comunicação, porque produz um déficit milionário por mês e que isso o povo argentino não pode pagar, porque a pobreza alcança 44% e a indigência 10%. Ele disse que isso não é possível que esses meios públicos, que estão a serviço dos governos da vez, produzam tais níveis de dívida.
Creio que essas privatizações não serão fáceis. Os grêmios já estão dizendo que vai haver muita resistência. O mesmo vai ocorrer com a Aerolíneas Argentinas, que ele quer privatizar. Já houve tentativas. Fez-se uma privatização e se comprou de volta.
No caso da Aerolíneas, há seis sindicatos, que se opõem. Então vai haver oposição e resistência. Não há nada firme que se possa dizer ou assegurar que vai ocorrer.
DCM: Universidades foram atacadas por jovens de extrema direita na Argentina depois do primeiro turno. Como você se sente quanto ao exercício de sua profissão?
Hugo Quiroga: Há jovens de extrema direita que apareceram agora. Mas eu não acredito que hoje o exercício da profissão de docência e de pesquisa esteja alterado em nada. Veremos mais adiante. Ele disse que a educação pública vai continuar e que isso depende das províncias. Ele se refere à educação primária e secundária. A saúde pública, que depende das províncias, os hospitais públicos….
Até agora, ele não disse nada sobre as universidades. O exercício da docência, creio que poderá ser exercido normalmente.
DCM: Quem tem mais a perder com uma eventual ruptura de relações, a Argentina ou o Brasil?
Hugo Quiroga: Efetivamente há uma tensão entre Milei e Lula. Lula lhe felicitou de maneira protocolar. Essa tensão não é boa porque a Argentina tem que manter relações muito boas com o Brasil, não apenas pela irmandade sul-americana, mas porque o Brasil é o principal país de comercialização e industrialização que a Argentina tem. O Brasil é um país com um PIB muito maior que a Argentina e tem menos a perder que a Argentina.
Eu espero que não haja nenhuma ruptura, creio que não vai haver. Muitas coisas que Milei disse como candidato não serão aplicadas de maneira tão incisiva. Seria um grave erro haver uma quebra com o Brasil e os empresários vão se opor porque têm negócios muito grandes com o Brasil.
DCM: O Mercosul estará liquidado com Milei?
Hugo Quiroga: O Mercosul não é uma ideia que atrai Milei. O Mercosul está bastante caído porque o Uruguai, neste momento, prefere estabelecer relações comerciais com outros países de maior envergadura, como Estados Unidos e Canadá, na medida em que se acentua o protecionismo no Mercosul.
Há uma discussão profunda a resolver: se há ou não uma maior abertura no Mercosul. Isso não tem a ver necessariamente com Milei. O Mercosul já vem sendo afetado há um tempo. O que o bloco tem que resolver é que acordos são obtidos entre seus integrantes e como se insere num mundo em que o neoliberalismo fracassou e o comércio transnacional é fundamental para o desenvolvimento sócio-econômico do nosso país.
DCM: De que maneira avalia a atitude de Lula com relação a Milei?
Hugo Quiroga: Parece-me que Lula e Milei têm que chegar a um acordo. Que tem que se juntar. O convite feito a Bolsonaro por Milei à cerimônia de posse pode significar um incômodo para a presença de Lula. Milei não deveria ter convidado Bolsonaro, mas tem que seguir os protocolos e buscar melhorar as relações com o Brasil, convidando apenas o presidente Lula.
DCM: Esse resultado foi uma vitória da extrema direita internacional?
Hugo Quiroga: Tem várias causas. Tem a ver com uma situação de empobrecimento muito grande na Argentina, de descontento, mal-estar de boa parte da sociedade, não apenas de setores médios, mas também dos setores populares, mais vulneráveis. Isso foi demonstrado na região metropolitana de Buenos Aires. Milei perdeu por poucos votos na província de Buenos Aires.
Milei é o espelho de uma Argentina que está em decadência, em declínio político, social, o espelho de uma sociedade em decomposição do ponto de vista econômico e social, na fragmentação dos partidos.
Nas internas dos partidos, no PRO, entre o chefe de governo da cidade de Buenos Aires e Patricia Bullrich, as tensões produzidas no “Cambiemos”… Creio que o núcleo duro de Milei é um núcleo de extrema direita. Esse núcleo de extrema direita não chega a 30% dos votos.
Agora, quando se diz extrema direita, ela identifica-se com o anarcocapitalismo. Não é uma extrema direita nacionalista, dura, como há na Europa. A extrema direita nacionalista e dura europeia reivindica o Estado contra os processos de globalização. Em alguns casos, há reivindicações de separatismo para fortalecer os países.
No caso de Milei, por ser um anarcocapitalista, quer diminuir o Estado ao máximo. A fonte teórica de Milei se encontra em economistas do século XX na Argentina que não tiveram nenhuma expressão na América Latina e tampouco na Argentina.
No final dos anos 1980, lia-se um politólogo na Argentina, Robert Nozick, traduzido, com um livro chamado “Anarquia, Estado e Utopia”. Aí encontramos uma versão mais politológica do que Milei quer. Mas não é uma extrema direita nacionalista. Estou dizendo que a extrema direita tem rosto diferente e é um rosto distinto dos outros. Pode haver coincidências com Bolsonaro, Trump e setores da direita europeia. Mas o anarcocapitalismo é uma expressão muito distinta de outras.
Este triunfo inesperado, com a envergadura de Milei, mudou os eixos do debate público na Argentina.