Aristóteles sobre os componentes, as consequências e os encantos da tragédia grega. Por Camila Nogueira

Atualizado em 2 de março de 2017 às 18:38

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Os trechos abaixo, que formam essa Conversa com Escritores Mortos, foram retirados da Poética aristotélica, obra imprescindível aos apaixonados por literatura, e na qual, em uma linguagem clara, elegante e concisa, Aristóteles – que aparentemente viveu entre 384 e 322 a.C. –explicita os fundamentos do teatro e da poesia grega e analisa obras de particular importância, como a Ilíada, a Odisséia e o Édipo Rei.

O que, na arte dramática, encanta os seres humanos? Por que nos sentimos atraídos por isso? 

É possível perceber que toda a poética tem na sua origem duas causas, ambas naturais – de fato, no ser humano a propensão à imitação é instintiva desde a infância, e em tal coisa ele se distingue de todos os outros animais; ele é o mais imitativo de todos, e é através da imitação que desenvolve seus primeiros conhecimentos. É por intermédio dela que todos experimentam naturalmente prazer. É indício disso um fato comum, a saber, tendemos a experimentar prazer com a visão de imagens sumamente fiéis de coisas que olharíamos penosamente, do que constituem exemplos as formas dos animais selvagens repugnantes e dos cadáveres.

Quais as semelhanças e as diferenças entre a tragédia e a epopeia?

A epopeia combina com a tragédia no fato de ambas constituírem imitação de assuntos sérios, no entanto diferem pelo fato de o épico empregar uma métrica simples e a forma narrativa. Outra diferença é a extensão, porquanto há um esforço, na medida do possível, no caso da tragédia, de não ultrapassar o tempo de uma revolução solar, ou perto disso; na epopeia não há limite de tempo.

Em suma, no que consiste a tragédia? 

Tragédia é a imitação de uma ação séria e completa, que possui certa extensão, em uma linguagem agradável, empregando-se não a narração mas a interpretação teatral, na qual os atores, fazendo experimentar a compaixão e o medo, visam à purgação (katharsin) de tais sentimentos. Ela é a imitação de uma ação consumada constituindo um todo, de uma certa extensão. A extensão deve possibilitar a ocorrência de uma transformação, em uma sucessão provável ou necessária de eventos, do fracasso ao sucesso ou vice-versa.

O que seria uma linguagem agradável?

Entendo por agradável, no que diz respeito à linguagem, o que reúne ritmo e harmonia.

Pode-se dizer que a tragédia é a imitação dos seres humanos?

Não, a tragédia não é a imitação dos seres humanos – mas da ação e da vida, da felicidade e da infelicidade. Embora seja em função do caráter que as pessoas possuem qualidades, são suas ações que determinam a sua felicidade ou o contrário. Assim, a narrativa é o que chamamos de “alma da tragédia”, enquanto o caráter moral não passa de secundário.

O que diferencia a tragédia da comédia?

A distinção entre a tragédia e a comédia é que esta última tende a representar as pessoas como inferiores aos seres humanos reais, ao passo que a tragédia as representa de modo superior.

O senhor poderia desenvolver essa ideia?

Na medida em que os artistas por imitação representam as pessoas em ação, sendo elas boas ou más (pois o caráter humano quase sempre se ajusta a esses dois tipos, porquanto é pelo vício e pela virtude que as pessoas se distinguem no caráter), eles estão capacitados a representar as pessoas acima de nosso nível normal, abaixo dele, ou tal como somos.

O senhor poderia nos oferecer algum exemplo?

Há personagens de Homero que são pessoas superiores, de Cleofontes que são como nós, enquanto Hegemonte de Tasos, que foi o primeiro autor de paródias, e Nicochares, autor da Deilíada, representam pessoas com caráter inferior.

Quando trata de um tema histórico, o poeta deve realizar um relato exato do que aconteceu?

Não é função do poeta realizar um relato exato dos eventos, mas sim daquilo que poderia acontecer e que é possível dentro da probabilidade ou da necessidade. O historiador e o poeta não se diferenciam pelo fato de um usar prosa e o outro, versos. A obra de Heródoto poderia ser versificada, com o que não seria menos obra de história. A diferença está no fato de o primeiro relatar o que realmente aconteceu, enquanto o segundo, o que poderia ter acontecido. Assim sendo, a poesia é mais filosófica e mais séria do que a história, pois a poesia se ocupa mais do universal, ao passo que a história se restringe ao particular.

Em uma tragédia, a existência da peripécia e do reconhecimento é bastante importante. O senhor poderia nos explicar de que se trata cada uma dessas coisas?

A peripécia é uma mudança para a direção contrária dos eventos, como ocorre no Édipo, em que a pessoa que acredita vir trazer alegria a Édipo produz o resultado oposto. Quanto ao reconhecimento, trata-se de uma mudança da ignorância para o conhecimento. Essa mudança conduz à amizade ou à inimizade, e envolve personagens destinados à boa sorte ou ao infortúnio.

Em Édipo Rei, pode-se dizer que o reconhecimento e a peripécia ocorrem de maneira simultânea.

Sim; e é essa conjunção que produzirá compaixão ou medo, precisamente os tipos de atos dos quais se considera que a tragédia seja uma imitação.

Há alguma parte constituinte da narrativa, excetuando o reconhecimento e a peripécia?

O sofrimento – ou seja, tudo o que experimentamos afetando de maneira dolorosa nosso corpo e nossa alma. O sofrimento se deve a uma ação destrutiva e dolorosa, como mortes no palco, agonias, ferimentos e assim por diante.

Os protagonistas das tragédias devem ser superiores a nós, que somos seres humanos comuns; mas eles devem ser propriamente virtuosos?

Para experimentarmos compaixão e medo, o protagonista deve ser alguém que, por mais que não se distinga pela virtude e pela justiça, também não cai presa do infortúnio devido ao vício e à perversidade, isso lhe ocorrendo devido a algum erro. A transmutação da boa sorte em infortúnio deve ser causada não pela perversidade do personagem, mas por um grande erro.

A coerência é importante em uma narrativa?

Imensamente; e creio que, ainda que a pessoa representada seja incoerente, e sendo esse caráter pressuposto, deveria conservar-se coerentemente incoerente.

Como assim?

Uma história não deve encerrar componentes que contrariem a razão. É melhor que não não haja nenhuma irracionalidade; se for inevitável, isso deverá ser externo à narrativa, como no caso da ignorância de Édipo quanto às circunstâncias da morte de Laio.

Ao tratar de uma personagem histórica ou mitológica, o poeta deve moldar sua personalidade de modo a apresentá-la de maneira simpática ao público?

Como a tragédia é imitação daqueles que são melhores do que nós, convém agir como os pintores de retratos, que reproduzem os traços distintivos de um indivíduo e, ao mesmo tempo, sem perder em vista a semelhança, aumentam a beleza dele. Do mesmo modo, o poeta, ao retratar pessoas irascíveis e indolentes, e outras dotadas de falhas semelhantes, deve, a despeito de representá-las como são, torná-las detentoras de equidade, tal como Homero, que tornou admirável Aquiles, modelo de aspereza.