Arrastão na Cracolândia reflete abandono de políticas sociais e violência do Estado

Atualizado em 9 de dezembro de 2020 às 13:18

Publicado na Rede Brasil Atual

“Fora do contexto, parece que elas só fizeram isso (arrastão). Mas teve toda uma ação violenta anterior, de seguidas violações de direitos humanos, que provocou aquela reação”, explica Flávio Falcone.
Foto: Reprodução

O arrastão no bairro da Luz, centro de São Paulo, que vitimou motoristas que passavam pela região conhecida como Cracolândia, na tarde desta terça-feira (8), foi provocado por uma sequência de operações violentas por parte da Guarda Civil Metropolitana (GCM) e da Polícia Militar (PM) contra usuários. A denúncia é do psiquiatra Flávio Falcone, integrante da equipe do Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes da Universidade Federal de São Paulo (Proad-Unifesp).

Em entrevista ao Jornal Brasil Atual, na edição desta quarta-feira (9), Falcone, que atua há seis anos na região, contou que por volta das 12h, a GCM e a PM realizaram uma operação no local. Segundo os agentes, os usuários começaram a agredir a guarda com pedras, paus e outros objetos. À imprensa, a prefeitura de São Paulo, por meio da secretaria municipal de Segurança Urbana (SMSU), também declarou que houve um deslocamento do fluxo por conta do “aumento do tráfego de caminhões para retirar material de demolição em função das intervenções no local”.

A operação de limpeza ocorria, aponta a pasta, quando os usuários teriam começado o tumulto. E “a reação teve de ser contida (pela GCM) para preservar a segurança de todos na região”, disse em nota. O patrulhamento também foi apoiado pela PM. Mas, segundo o psiquiatra, o que a população do local relata é que os agentes começaram a lançar bombas contra os usuários “sem nenhuma motivação aparente para agir com violência”.

Mais bombas contra usuários

Em meio à operação, o fluxo teria se deslocado para a praça Princesa Isabel, onde, ressalta Falcone, novas munições químicas foram usadas. Na sequência, os usuários voltaram para a esquina entre a rua Helvétia e a Alameda Cleveland. E, pouco depois, começou o temporal que deixou a cidade em estado de atenção para alagamentos.

O psiquiatra descreve que algumas pessoas tentaram se abrigar nas marquises da estação Júlio Prestes e da Sala São Paulo, onde estava também um grupo de policiais. Nesse momento, a guarda começou a repelir os usuários, lançando novamente bombas de gás lacrimogêneo sobre eles. Em sua página no Instagram, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, padre Júlio Lancellotti, divulgou vídeos que mostram as pessoas indo buscar abrigo nas imediações para se proteger da forte chuva, mas sendo reprimidas com bombas pela GCM.

Ao site da Carta Capital, o pároco declarou que a ação violenta da guarda marcou o início dos ataques aos motoristas. Em imagens que circulam pelas redes sociais, um grupo de usuários foi flagrado ameaçando pedestres e comerciantes. Veículos foram depredados com socos, chutes e objetos. E os motoristas acabaram cercados. Um deles chegou a ter a porta do carro aberta e seus pertences foram roubados.

Onde estava a polícia?

O estranho, segundo o padre Júlio, é que a GCM e a PM não tentaram agir contra o arrastão. “Violência gera violência. Agora, o que me estranha é que a Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar estavam pela região. Mas não se vê ninguém tentando defender os motoristas, que foram atacados de maneira terrível”, comentou à Carta Capital.

Falcone também acrescentou que “fora do contexto, parece que eles (os usuários) só fizeram isso (arrastão). Mas teve toda uma ação violenta anterior, de seguidas violências, violações de direitos humanos, que provocou aquela reação das pessoas que vivem ali na Cracolândia”, observa o psiquiatra.

Ao portal G1, o secretário-executivo da PM, o coronel Alvaro Camilo, defendeu que a presença de policiais na região “é constante”. “Nós precisamos de toda a sociedade, não é um caso só de polícia. Se esse problema fosse simples ele já estaria resolvido, mas a presença policial é constante, ali fica uma base na Praça Princesa Isabel”, afirmou.

Desmonte das políticas de tratamento

RBA vem acompanhando ao longo deste ano um aumento na repressão policial à população da região, em paralelo com o desmonte das políticas voltadas para a reinserção social e de promoção da saúde mental que foram implementadas em gestões anteriores às do governador João Doria e do prefeito Bruno Covas, ambos do PSDB.

Falcone trabalhou no programa De Braços Abertos (DBA) da gestão de Fernando Haddad (PT), – que priorizava as políticas de redução de danos e moradia –, e, com encerramento, passou a atuar no programa estadual Recomeço. Dessa perspectiva, ele destaca também acompanhar o recrudescimento da violência no território. Os atos teriam começado ainda em 2017, quando o ex-prefeito e hoje governador anunciou que havia “acabado com a Cracolândia” em operações que tentaram demolir casas com pessoas dentro.

“Foi uma das ações mais cruéis que eu já vi um governo fazer. A maior parte das pessoas que estavam nos hotéis (do DBA) eu conhecia a história e pelo nome de cada um; vi essas pessoas voltarem a morar na rua e a passar o dia inteiro no fluxo como uma forma de se proteger da violência. Foram retiradas do quarto onde estavam no programa anterior e foram jogadas na rua”, pontua o psiquiatra.

Como uma medida “paliativa”, aponta, o governo logo depois implantou os contêineres onde as pessoas em situação de rua e em uso de drogas podiam dormir. Mas, de dois anos para cá, lembra, o governo estadual deu início a um processo de retirada das pessoas da cena de uso. Não para garantir um tratamento, mas para efetivar o processo de construções imobiliárias por meio de parcerias público-privadas, as PPPs.

Truculência não cura

“Esse é o ponto central do que está em jogo no momento, o processo de especulação imobiliária que a região vem sofrendo”, ressalta Falcone. “Há a visão de que aquelas pessoas, na maior parte pretos e pobres, estão ali atrapalhando o capital de executar as obras que já estão acordadas com a prefeitura”, afirma.

Em abril deste ano, em meio à pandemia do novo coronavírus, a gestão Covas fechou a unidade II do Atendimento Diário Emergencial (Atende). O serviço era o último equipamento social que ainda oferecia alimentação, condições básicas de higiene e pernoite à população da região. A transferência do Atende 2 para o Glicério, a cerca de três quilômetros da cena de uso da Luz, não impediu, no entanto, que o fluxo continuasse existindo, só que desde então, sem o devido acolhimento.

Pelo Twitter, o deputado federal Ivan Valente (Psol-SP), destacou que “as cenas” (do arrastão) na tarde desta terça “são mesmo assustadoras”. Mas reforçou que “se a Cracolândia pudesse acabar por meio de porrada, já teria acabado. A truculência policial não educa, nem cura. Apenas gera mais violência e exclusão, adoecendo ainda mais pessoas que precisam de acolhimento. Só teremos resultados ao tratar usuários com empatia em vez de ódio”.