As conexões de Nikolas Ferreira com a Máfia dos Combustíveis. Por Sara Vivacqua

Uma investigação do DCM revela ligações entre as campanhas eleitorais de Nikolas Ferreira a cartéis de combustíveis, indivíduos condenados e investigados por crimes econômicos e fraudes fiscais em Minas Gerais.

Atualizado em 27 de outubro de 2025 às 20:16
O deputado federal bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG). Foto: Wallace Martins/Estadão Conteúdo

*Colaborou Lorenzo Vivacqua

Por trás da trajetória meteórica de Nikolas Ferreira, da favela Cabana do Pai Tomás em Belo Horizonte ao Congresso Nacional em Brasília, parece ocultar-se muito mais que um suposto fenômeno de redes sociais.

Enquanto a ultradireita o celebra como prova de meritocracia de um jovem de periferia e a esquerda atribui sua ascensão ao poder da ultradireita nas redes sociais, as conexões que apadrinharam Nikolas Ferreira permanecem ofuscadas por explicações óbvias.

Uma extensa investigação do DCM envolvendo fontes, documentos eleitorais, judiciais e contratos privados do deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) revela uma rede de relações com indivíduos envolvidos em atividades ilícitas/ em Minas Gerais na sua ascensão politica.

De partida, o maior doador individual da campanha de Nikolas Ferreira é Ronosalto Pereira Neves, empresário do grupo varejista Mart Minas, que confessou envolvimento em esquema de repasses ilícitos relacionados ao ex-senador Aécio Neves e à JBS. Investigado em 2018 na Operação Ross da Polícia Federal.

Ronosalto admitiu ter realizado uma “transação financeira” a pedido de Joesley Batista que gerou R$ 1,1 milhão em dinheiro vivo—montante retirado diretamente em sua empresa por gerente da JBS, conforme reportagem do jornal O Globo.

Mas essa não é a única aliança obscura em sua ascensão política. Em suas campanhas eleitorais, Nikolas Ferreira utilizou-se repetidamente de endereços e infraestrutura fantasma de um arranjo societário com várias empresas condenadas por ilícitos contra a ordem econômica na maior operação contra cartéis de postos de combustíveis da história de Minas Gerais.

A Operação Mão Invisível resultou na condenação em 2019 de diversas empresas desse grupo no esquema que ficou conhecido como “Máfia do Combustível”: uma rede corporativa ilícita envolvida em cartel, fraudes, manipulação de preços, sonegação fiscal e outras operações ilegais.

Seus sócios também foram autuados pessoalmente por fraudes fiscais pelo Conselho de Contribuintes de Minas Gerais e por uma série de ilícitos, incluindo manipulação de bombas de combustíveis, sonegação de impostos, fraude de livros contábeis e fiscais, gerenciamento de caixa oculto entre outros ilicitos.

Para além destas condenações, os mesmos indivíduos se encontram atualmente também sob investigação criminal, sob sigilo do Ministério Público de Minas Gerais.

Comitês Eleitorais em Postos de Gasolina Fantasmas

Documentos de prestação de contas eleitorais e contratos privados revelam que o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) estruturou suas campanhas de 2020 para vereador e de 2022 para deputado federal em um endereço peculiar em Belo Horizonte: Avenida Silva Lobo, 667.

Trata-se de um posto de gasolina desativado há anos, uma espécie de lote abandonado em estado de evidente deterioração e sem qualquer infraestrutura. Em 2022, junto com o deputado estadual Bruno Engler (PL-MG), Nikolas inaugura ali o que chamaram de “QG Bolsonaro”, a sede de suas campanhas.

Esse espaço que pertenceu ao antigo posto Jéssica. Desde 2013, encontra-se registrado formalmente como um novo posto: o Veneto Comércio de Combustíveis Ltda (CNPJ 19.446.904/0001-73), com atividade econômica declarada de “comércio varejista de combustíveis”. Entretanto, desde seu novo registro, o posto Veneto nunca chegou a operar, constando somente em contratos sociais e registros junto a Receita.

“Este posto nunca funcionou realmente, existindo apenas a estrutura física completamente desativada e abandonada, inclusive sem bombas. Qualquer morador da região sabe disso. Esse registro era só no papel para alguma finalidade que desconhecemos, ” relatou uma das fontes ao DCM.

Ligações com a Máfia dos Combustíveis

Ao investigar quem são os proprietários do Posto Veneto cedido a Nikolas em todas as suas campanhas, tem-se algo mais perturbador que um posto inativo/fantasma: os sócios da Du Pape Empreendimentos.

Uma série de documentos oficiais de órgãos de controle demonstra que o “grupo empresarial” proprietário da Du Pape Empreendimentos S.A., controlado por Ciro Augusto Bergomi Picarro e Augusto Joaquim Picarro, acumula histórico consistente de práticas ilícitas organizadas no mercado de combustíveis em Minas Gerais, envolvendo desde fraude fiscal, manipulação fraudulenta de bombas de gasolina e caixas clandestinos.

Documentos da Advocacia-Geral da União e do CADE revelam que outros postos ativos controlados na atualidade pelos sócios da Du Pape — o Posto Fórum Ltda (CNPJ 02.879.461/0001-01), o Posto Floramar Ltda (CNPJ 20.159.968/0001-72) e o Posto Brilhante Ltda (CNPJ 25.822.974/0001-81) — foram alvos da Operação Mão Invisível, condenados por formação de cartel, uma das infrações mais graves à ordem econômica.

A Operação, de magnitude sem precedentes em Minas Gerais, foi deflagrada pela força-tarefa da Polícia Federal, Ministério Público de Minas Gerais, Agência Nacional do Petróleo e CADE.

Não se sabe se os sócios da Du Pape eram os proprietários originais desses três postos à época da condenação ou se adquiriram deliberadamente CNPJs já investigados por cartel — hipótese que também levantaria questionamentos, pois, no direito brasileiro, a sucessão empresarial implica a transferência de passivos e dos efeitos administrativos e civis da condenação — incluindo multas, sanções econômicas e restrições impostas por órgãos como CADE, ANP ou pelo fisco estadual.

Assim, a transferência de CNPJs, aquisições e reorganizações societárias nesse contexto poderia eventualmente indicar aparente finalidade de ocultação.

Contudo, a Procuradoria Federal Especializada junto ao CADE concluiu a existência de “cartel hardcore“: uma formação de crime econômico organizada, estável e coordenada de manipulação de preços, com monitoramento e punição de quem não obedecia às regras sob risco de represálias comerciais ou isolamento no abastecimento, atuando com práticas típicas comumente associadas ao crime organizado; arranjos societários de faixada que operam por práticas corporativas ilícitas. É a partir dessa rede corporativa ilícita, segundo registros públicos e documentos de campanha, que Nikolas Ferreira estruturou toda suas bases eleitorais.

 O processo CADE nº 08700.010769/2014-64, em 2019, impôs multas a esses três postos de combustíveis de Belo Horizonte por infração à ordem econômica e cartelização de preços.

 

Ronosalto Neves

Na esfera federal, o CADE enquadrou os três postos por conduta coordenada no varejo de combustíveis — e a régua do dano veio em negrito: Posto Floramar Ltda., multa de R$ 1.136.338,07; Posto Brilhante Ltda., R$ 860.855,20; e Posto Fórum Ltda., R$ 556.976,18.

A conta não parou no carimbo: com atualização e execução, os valores inflaram no passivo — o Floramar aparece com R$ 1.606.713,85 em dívida ativa; o Brilhante, R$ 1.217.197,60; e o Fórum figura com saldo remanescente de R$ 787.530,90.

No âmbito estadual, o Conselho de Contribuintes de Minas Gerais concluiu pelas fraudes operacionais: entradas e saídas desacobertadas de ICMS/ST, manipulação de encerrantes (os totalizadores das bombas) e descumprimentos no SPED.

O pacote sancionatório veio completo — imposto devido, multa de revalidação e multas isoladas — com destaque para o Acórdão 25.141/25/3ª (28/02/2025), que tornou o lançamento procedente contra o Posto Floramar e alcançou os administradores Ciro Augusto Bergomi Picarro e Augusto Joaquim Picarro. Blindagem societária, aqui, virou papel de seda.

É, neste particular, mais uma vez, que chama a atenção que o Posto Veneto, sede das campanhas eleitorais de Nikolas Ferreira, tenha se originado diretamente do antigo Posto Jéssica — estabelecimento também condenado por cartel de combustíveis pelo CADE e que ainda se encontrava em fase de investigação no momento em que foi adquirido pela empresa Du Pape e rebatizado como Veneto.

Por outro lado, já sabidamente como sócios administradores dos postos,o Conselho de Contribuintes de Minas Gerais (CCMG) responsabilizou pessoas físicas de Ciro Augusto Picarro e Augusto Picarro por fraude fiscal deliberada e organizada, com dolo e simulação para mascarar operações e reduzir indevidamente o pagamento de tributos.

Os dois foram pessoalmente coobrigados pelos ilícitos praticados nos postos sob seu controle, que incluíam sonegação, adulteração de registros de venda com o propósito deliberado de  ocultar o volume real de combustíveis e manutenção de caixas paralelos.

Em junho de 2024, a situação se agravou, o Ministério Público de Minas Gerais abriu o Procedimento Investigatório Criminal (PIC) nº 02.16.0079.0054569/2023-29, voltado a infrações de ordem econômica e tributária. Entre os representados estão Ciro e Augusto Picarro e a própria Du Pape Empreendimentos S.A.

 

As intervenções políticas e campanhas massivas de desinformação em mídias sociais de Nikolas Ferreira contra os mecanismos de regulação e fiscalização financeira do Estado desenham e geram claros questionamentos acerca de um quadro inquietante de interferência quando contrastados com suas associações com pessoas e arranjos societários persistentemente envolvidos em infrações de alta gravidade e extensão a ordem econômica. Seria acidental essa infiltração na política de “empresas” operando mediante um padrão de práticas ilícitas e fraudes, coordenadas e persistentes?

Contratos Suspeitos e Aliados Políticos “do Setor”

O primeiro aspecto que chama atenção nos documentos é o formato jurídico escolhido para o aluguel do imóvel da Avenida Silva Lobo, 667.

Nas campanhas de 2020 e de 2022, Nikolas Ferreira formalizou a ocupação por meio de um “CONTRATO DE LOCAÇÃO RESIDENCIAL”, apesar de se tratar de um espaço comercial entre dois CNPJs e com uso declarado como exclusivamente de comitê eleitoral, ao custo de R$ 10.000,00 em cada campanha (vereador em 2020 e deputado federal em 2022).

 

É sintomático o fato de outro político aliado, com histórico consistente de atuação pró-interesses de postos de combustíveis e intensas campanhas de desinformação a esse respeito, o deputado estadual Bruno Engler (PL-MG), ter se tornado beneficiário do contrato de Nikolas Ferreira com a Du Pape. Nikolas firma um contrato de cessão de uso gratuito de comitê eleitoral beneficiando Engler.

Engler é notório por seu engajamento militante em campanhas pela redução de impostos sobre a gasolina e outros derivados.

Ele foi autor de projeto de lei para alterar a base de cálculo do ICMS para combustíveis em Minas Gerais para favorecer os operadores de postos de gasolinas. Engler também impulsionou uma série de campanhas com informações falsas nas redes sociais sobre o preço dos combustíveis nos governos Bolsonaro e Lula e na própria Assembleia de Minas Gerais, desmentidos pelo Estado de Minas.

O jurista ouvido pela reportagem explica que as regras do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) exigem que a despesa esteja condizente com o objeto contratado e devidamente comprovada, inclusive por questões de transparência quanto à finalidade do gasto e à regularidade tributária do imóvel e da real natureza contratual.

A face trabalhista do cartel: o padrão de inadimplência de Ciro Picarro

Se as investigações da Operação Mão Invisível já haviam revelado a engrenagem criminosa de cartel e fraude fiscal que alimentou o império no setor de combustíveis, uma nova camada do mesmo enredo expõe a face socialmente mais corrosiva dessa estrutura: a violação sistemática dos direitos trabalhistas.

Documentos do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-MG) comprovam que Ciro Augusto Bergomi Picarro e Augusto Picarro acumulam mais de 180 processos trabalhistas ativos em Belo Horizonte, Contagem, Betim e Nova Lima — um número que, por si só, os colocam entre os grandes litigantes individuais demandados na Justiça do Trabalho em Minas Gerais.

Esse dado transforma a percepção de Ciro Picarro e de Augusto Picarro de um meros empresários sob investigação tributária e já condenados em dezenas de processos trabalhistas em algo mais profundo: agentes econômicos estruturalmente devedores, cuja operação empresarial se mantém por meio da inadimplência reincidente e deliberada de obrigações salariais e previdenciárias.

Segundo a fonte do DCM, inclusive, nenhum dos postos de gasolina, possuem ativos para quitar as suas dívidas, sendo necessário, até mesmo, buscar penhora de “gasolina” para tentar honrar as obrigações trabalhistas devidas aos empregados.

As ações relatadas envolvem, em sua maioria, não pagamento de verbas rescisórias, FGTS e contribuições previdenciárias, além de dispensas sem quitação e execução frustrada de sentenças — configurando o padrão clássico de quem utiliza sucessões empresariais e encerramentos formais para mascarar o mesmo núcleo de gestão.

Essa dimensão trabalhista reforça o que o próprio Conselho de Contribuintes de Minas Gerais já havia apontado no âmbito fiscal: a presença de dolo e simulação na condução das empresas ligadas aos Picarro. A reincidência em esferas distintas — fiscal, econômica e trabalhista — revela uma consistência delituosa, onde a fraude não é acidente, mas método.

Campanha de desinformação contra a regulação financeira

O deputado Nikolas Ferreira operou uma campanha massiva de desinformação em suas redes sociais, atacando o Pix e a regularização fiscal, incentivando deliberadamente o uso de dinheiro vivo.

Em publicações de tom alarmista, o parlamentar distorceu sistematicamente a Instrução Normativa nº 2.219/2024 — que ampliava o envio de informações agregadas por fintechs para fins de fiscalização, com o objetivo de combater fraudes e lavagem de dinheiro.

Nikolas alegava, de forma maliciosa e alarmista, que haveria “fiscalização indiscriminada” de Pix e contas, o que gerou pânico artificial.

A repercussão contribuiu, de acordo com autoridades de forma decisiva para inviabilizar a norma, que justamente visava coibir esquemas de lavagem de capitais e sonegação fiscal — representando uma vitória direta para estruturas criminosas que dependem da opacidade financeira para operar.

A ironia se tornou evidente quando a Operação Carbono Oculto expôs a sofisticada infiltração do PCC no sistema financeiro formal, confirmando precisamente os riscos que a norma criticada e que Nikolas buscou inviabilizar a sua aprovação pretendia mitigar. O conteúdo desinformativo do deputado voltou a circular.

Em face dessa campanha, o deputado Rogério Correia (PT-MG) protocolou, em agosto de 2025, na Procuradoria-Geral da República, uma notícia-crime solicitando a abertura de inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar quatro possíveis crimes cometidos por Nikolas Ferreira: divulgação de informações falsas ou incompletas sobre instituições financeiras (art. 3º da Lei 7.492/1986), favorecimento indireto à lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998), obstrução de investigações de organizações criminosas (Lei 12.850/2013) e até mesmo associação para o tráfico de drogas (Lei 11.343/2006), caso se comprove vínculo entre a desinformação disseminada e a movimentação de recursos ilícitos do PCC.

A peça argumenta que o resultado objetivo de sua conduta beneficiou concretamente organizações criminosas, independentemente da existência de vínculo direto, ao sabotar mecanismos de rastreamento financeiro.

Resta saber se as autoridades investigarão a fundo essas conexões com os carteis de combustíveis e doadores opacos— ou se Nikolas Ferreira continuará operando na interseção conveniente entre discurso antissistema e interesses do submundo financeiro.

Sara Vivacqua
Sara Vivacqua é advogada graduada pela Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg e mestranda em jornalismo investigativo pela Birkbeck, University of London. Foi procuradora do governo britânico e exonerada em maio de 2025 após "constranger o governo" por defender direitos humanos, a liberdade de Julian Assange e a soberania da Palestina. O governo Britânico reconheceu oficialmente que não houve qualquer impacto negativo em seu desempenho profissional nem uso indevido de informações do cargo.