As contradições brasileiras encantam e espantam o mundo

Atualizado em 14 de junho de 2014 às 18:58

A Sports Illustrated está publicando uma série muito bacana de vídeos sobre a Copa e a cultura do futebol no Brasil, conduzidos por um dos principais editores da revista, Grant Wahl. Chama-se “Planet Fútbol”. (Eles ainda não sacaram, aparentemente, que o esporte por aqui se chama “Futebol”.) Não perca. Comece por este aqui e depois assista aos demais.

Grant Wahl também publicou esses dias uma boa matéria, em que diz o seguinte: “O Brasil não é sutil, muito menos durante sua primeira Copa do Mundo em 64 anos. Você começa o seu dia tendo que mudar seus planos de viagem porque a polícia está nas ruas jogando gás lacrimogênio e atirando balas de borracha em manifestantes. Você fica impressionado quando o trem expresso que leva para o estádio da Copa é mais legal do que qualquer metrô que você já tenha usado nos Estado Unidos. E você fica maluco com os extremos de uma partida de abertura em uma Copa do Mundo que faz você mexer tanto a cabeça de lá para cá que é preciso colocar um colar ortopédico logo em seguida”. É muito interessante ver nossos contrastes, ver os nossos dois Brasis, cindidos desde o berço, e postos juntos, forçosamente, por um evento dessa magnitude, causando todo tipo de fricção, sendo lidos por um estrangeiro que está acostumado a sociedades mais coesas e a nações mais, na falta de uma palavra melhor, civilizadas.

GRINGOS PELAS RUAS: APRENDIZAGENS DE LADO A LADO

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Tou com a impressão que os 600 mil estrangeiros que estão chegando para a Copa, ou que já estão aqui, não tem tanto a expectativa de que São Paulo seja Copenhagen e de que o Rio seja Zurique. Ao que parece, os gringos sonham apenas com simpatia, hospitalidade, alegria tropical, sorrisos e fun time no país do futebol. Bem, não conseguiremos lhes oferecer a eficiência que eles nem esperavam muito. Porque não somos eficientes. Nunca fomos. Sei lá se um dia seremos. Espero que ao menos consigamos lhes oferecer a tepidez e a leveza de espírito de um lugar bom de estar, de um foto que sabe receber e que sabe se divertir. Com isso eles estavam contando. O humor nacional já mudou um pouco, mas ainda estamos de cara amarrada, lavando a roupa suja na sala, sobre o tapete, jogando água suja para todo lado.

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Isto não significa, vale sublinhar outra vez, ignorar nossos problemas. Trata-se apenas de tratá-los a seu tempo, no foro certo. A luta continua, companheiros. Ela não se encerra em 15 de julho. Ao contrário, diria que ali é que ela começa, assim que as visitas forem embora e ficarmos de novo sós dentro de casa, em família, para ajustarmos contas.

E eu fico imaginando o nó que está dando na cabeça do Perfeito Idiota Brasileiro (PIB) quando ele perceber que os gringos para quem ele paga pau, de olhos e cabelos claríssimos, estão procurando o transporte público por aqui, os metrôs e os ônibus, modais que ele despreza exatamente por associar àquela gente brasileira parda e feia da qual ele quer distância e que ele imagina que só existe para limpar o seu banheiro. Tilt. Se o PIB fosse um pouquinho mais inteligente e informado perceberia que não há maior sinal de subdesenvolvimento do que SUVs contornando favelas. Essa, sim, é uma definição clássica de Terceiro Mundo. E que usar metrô e bicicleta e passear a pé são hábitos exclusivos de gente civilizada.

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MANIFESTAÇÕES SADOMASOQUISTAS

Não consigo deixar de achar essas manifestações violentas, que erupcionaram no dia de estreia da Copa, e que estão reprimidas com ainda mais violência, uma imbecilidade de lado a lado. Sobretudo, um jeito antigo de fazer política, da parte dos manifestantes. E um jeito obsoleto de manter a ordem, do lado da forças policiais. Colocar uma máscara, uma roupa preta e sair quebrando agências bancárias e solapando aos outros o direito de ir e vir, coagindo quem talvez discorde das suas bandeiras, é um negócio ludista, com cara de século 19. Ao mesmo tempo, a polícia sair às ruas distribuindo cacetadas, jatos generosos de spray de pimenta e uma fartura de balas de borracha indiscriminadamente, também é um movimento pré-democrático. (Bem, o confronto da cavalaria com os índios, que vimos em Brasília há poucos dias, também é, né?)

Estou num ponto da vida em que qualquer coisa que ameace a minha integridade ou a da minha família, que me cause medo ou que me faça querer reagir com os punhos, não pode ser considerada uma coisa boa. E nisso manifestante e soldados tem se igualado. Já vivi o bastante para ter claro que não é esse o mundo em que acredito. Não é esse país que estou gostaria de construir para os meus filhos. Essas relações são, antes que tudo, ineficientes – porque não levam a nada. Mas são esteticamente cafonas – o que já diz muito do que elas tem por dentro e do que elas representam por debaixo. O duro é que muitos desses meninos mascarados estão ali em busca de virarem mártires com repercussão midiática mundial. E muitos dos verdugos estão ali simplesmente porque gostam de bater. Ganharam essa prerrogativa, junto com um coldre e um escudo, e tomaram gosto pela coisa. É quase uma relação sadomaso entre black blocs e policiais. E é claro que uns e outros só conseguem se divertir diante das câmeras e de nossos olhares aparvalhados. Exibicionistas só sentem prazer quando contam com uma plateia de voyeurs de olho rútilo e boca trêmula.

Aliás, os métodos da polícia brasileira, que nós mesmos, brasileiros, infelizmente, aprendemos a temer quase tanto quanto tememos aqueles que rompem com a lei por aqui, recebeu atenção recente do The New York Times.

Noutra matéria correlata, o mesmo The New York Times roça no problema da cisão brasileira. O que eles não sabem é que estamos rachados ao meio desde que nascemos como nação. E em quase todo tipo de tema nacional, num espectro muito mais amplo do que futebol e Copa. Não há unidade, há muito pouco consenso. Há dois Brasis aqui dentro. Há séculos. E a relação entre esses dois países é de ódio e desconfiança e de disputa entre antagonistas. Nós não nos reconhecemos como uma só nação. É fato que o Brasil oferece um bocado de espaço para a mobilidade social. Ao mesmo tempo, é ainda mais notório que as crianças nascem inegavelmente com diferenças brutais de perspectivas, expectativas e oportunidades por aqui.

GREVES OPORTUNISTAS

Enxergo essa eterna discordância que nos une, esse tanto que amamos nos odiar e nos ferrar uns aos outros, nas recentes paralisações. Metroviários em São Paulo. Motoristas em Natal. Aeroportuários no Rio. Esse cruzar de braços, nessa altura do campeonato (sem trocadilho), parece embutir um belo espírito de porco. Identifico esse timing malfazejo, que ameaça pontos cruciais com o caos num momento crítico para o país, como um golpe abaixo da linha da cintura. Existe, do lado dos patrões, o chamado “abuso de poder econômico”. Que, quando ocorre, é coisa detestável. Do lado dos trabalhadores, também é possível ser bem cafajeste numa mesa de negociações. Vocês estão nos mostrando isso com esse dedo no olho, amigos. Obrigado pelo esclarecimento.

SOBRE ROBBEN, VAN PERSIE E A FÚRIA LARANJA

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Van Persie

E será possível que o melhor jogo da Copa tenha sido logo a segunda partida do torneio? Robben tem tudo para ser um cara detestado. É antipático, arrogante, se acha para caramba, um herdeiro perfeito daquela empáfia dos irmãos De Boer. Mas como joga. E, detalhe importante, se não acreditasse tanto no seu taco, se não polisse tanto o próprio umbigo, não jogaria desse jeito. Sem autoestima e sem confiança em si mesmo, não se faz nada nem se vai a lugar algum. Robben nos mostra isso com muita clareza. Mas ele nos mostra mais: não basta acreditar em si mesmo, tem que trabalhar muito, ter seriedade. Para cobrar dos outros é preciso se cobrar muito também. A empáfia sem competência e afinco é só isso: empáfia.

E Van Persie, que estreou marcando um dos gols mais bonitos da história das Copas, tem idade e estilo de ex-jogador. Para não falar dos cabelos grisalhos. Jogador depois dos 30 como me enverga um tanto, com o peso dos anos, dos sucessos e dos fracassos, das alegrias e das decepções, dos golaços e dos gols perdidos. Do Zico pós-86 a Paulo Baier, de Fabio Júnior a Lúcio Flávio, de Ramón a Veloso. Todos andavam meio corcundas em seus últimos anos. O jogador passa a se mover numa cadência toda especial que só adquire depois de muitos anos de estrada. Van Persie é um jogador vivendo sua última Copa. Contemplando tudo que viu e viveu. Sabedor de que não jogará outro Mundial. De que resta pouca areia em sua ampulheta. Para Van Persie, é agora ou nunca mais. Não importa que essa seleção da Holanda seja uma entressafra de talentos, um meio dentre gerações. Essa Copa é Van Persie consigo mesmo, indo adiante. Ou será de Van Persie contra si mesmo, desistindo antecipadamente. Ele olhará para trás e verá, além de Robben e Sjneider, um monte de estreantes. E todos estarão olhando para ele. E o seguirão. Para a glória ou para o infortúnio. Trata-se daqueles momentos em que homens comuns tem a chance de se transformar em heróis, em semideuses, em seres imortais. Ou então de fazer uma viagem sem escalas para a aposentadoria e o ostracismo. Ronaldinho, Robinho e Kaká passaram por essa encruzilhada na Copa de 2006. Aquela era a Copa deles. Era a sua chance. Não era mais a Copa de Cafu, Roberto Carlos ou Ronaldo. Faltou a eles serem mais Van Persie. Que Van Persie possa seguir nos mostrando que pode haver beleza no entardecer, e que um belíssimo raio pode se revelar no ocaso, e que as despedidas podem encerrar momentos inesquecíveis.