PUBLICADO ORIGINALMENTE NO EMERGE MAG
Nos últimos dias, alunos de Universidades e Institutos Federais de todo Brasil saíram às ruas para protestar contra a balbúrdia que o governo Bolsonaro tem promovido no Ensino Superior brasileiro.
O caso mais emblemático foi Abraham Weintraub, Ministro da Educação, utilizando de chocolates para tentar suavizar o economês e o impacto que o corte de 30% no orçamento causaria nas universidades federais.
Ele tentou ser didático, porém, foi patético. A redução de cerca de R$ 2 bilhões atinge diretamente o dia a dia das instituições e suas despesas mais básicas, como luz, telefone, água, limpeza, segurança e manutenção.
O contingenciamento comprometerá drasticamente a continuidade do trabalho de algumas áreas já neste ano, como é o caso do Instituto Federal do Espírito Santo.
O corte implode de vez o projeto de expansão das universidades federais brasileiras previsto no Plano Nacional de Educação (PNE). O projeto calcula que, até 2024, haja um acréscimo de 75% em relação a 2014 no número de vagas nessas instituições, garantindo o acesso, a inclusão social e a mudança de vida de 2,1 milhões futuros estudantes.
Em meio a tanto desmanche, Emerge Mag entrevistou Anna Muylaert, diretora do aclamado “Que Horas Ela Volta?”. O filme conta a história de Jéssica, uma menina pobre que viaja de Pernambuco a São Paulo para prestar vestibular. Ela se hospeda na casa onde a mãe trabalha como empregada doméstica há anos e (alerta de spoiler) entra na universidade pública em que o filho da patroa não consegue entrar.
Desde o lançamento do filme, em 2015, Anna conheceu centenas de jovens que, como Jéssica, foram as primeiras pessoas de suas famílias a pisarem numa universidade sem precisar abaixar a cabeça para os donos do poder.
“Essa geração de universitários vindos de famílias pobres são pessoas muito fortes, muito sérias, que têm um passado familiar ligado à tradição escravocrata do Brasil. Ao mesmo tempo, devido ao estudo, possuem expectativas de futuro completamente diferentes das que seus pais tiveram. Esses jovens são o que temos de mais rico e interessante no país hoje.”
A cineasta envolveu-se tanto com essas histórias que decidiu levar as “Jéssicas” do mundo real para as telas do cinema. Anna está produzindo o documentário “Jéssicas – O filme”, que será lançado por sua produtora, a África Filmes.
“Os programas de acesso à educação, como ProUni e Pronatec, criaram uma geração de brasileiros cuja importância terá que ser retratada de um jeito ou de outro em algum momento da história”, diz ela.
Nessa entrevista concedida à repórter Karol Pinheiro, Anna Muylaert fala sobre a pesquisa e a produção do documentário, que acaba de ter seu roteiro finalizado pela documentarista Maira Buhler.
Entretanto, o filme ainda não tem data de lançamento. O fato se dá porque atualmente no Brasil a investida não é só contra a educação, mas também contra a cultura – o que não desanima a cineasta.
“Eu não conto história para boi dormir. Eu gosto de me meter em encrenca”
Anna ainda comenta sobre as alegrias e as dificuldades de sua ascensão e de outras mulheres na profissão e no cinema. As fotos que você vê ao longo da entrevista são de João Grijo, fotógrafo de Emerge Mag.
Emerge Mag: No ano passado, por meio das suas redes sociais, você convocou jovens que acessaram ao Ensino Superior por meio de programas como o ProUni a enviarem seus relatos. A postagem dava conta de que as histórias seriam selecionadas para um documentário de nome “Jéssicas – O filme”. Em que pé está esse projeto?
Anna Muylaert: A minha produtora, a África Filmes, ganhou um edital de núcleo criativo da Agência Nacional do Cinema (Ancine) para desenvolver cinco projetos, entre os quais um documentário sobre as “Jéssicas”, a primeira geração beneficiada por programas de acesso às universidades.
Junto com o Fernando Sato e o Bruno Miranda, do Jornalistas Livres, fizemos uma grande pesquisa e acabamos de terminar o roteiro, escrito pela documentarista Maira Buhler. Mas, ao contrário do que a postagem fazia crer, esse projeto não será dirigido por mim. Estou apenas o produzindo.
Com a atual conjuntura do governo federal, não sei quando faremos esse filme, mas, independentemente de política partidária, os programas de fomento ao acesso à educação criaram uma geração cuja importância terá que ser retratada de um jeito ou de outro, em algum momento da história.
O nome “Jéssicas” faz referência à personagem de seu filme “Que horas ela volta?”, em que a personagem rompe um ciclo de poucas oportunidades e ingressa na universidade. Como e quando você decidiu que queria levar as telas histórias reais das “Jéssicas” do Brasil?
Em 2016 eu tive a ideia de fazer esse documentário, pois, depois de toda a minha experiência humana no lançamento do “Que horas ela volta?”, achei que tinha muito assunto ali. É uma geração histórica, de meninos e meninas, filhas de empregadas domésticas, que viveram em quartinhos do fundo quando eram crianças e uma década depois estavam estudando em Harvard. São pessoas muito fortes, muito sérias, que têm um passado familiar ligado à tradição escravocrata do Brasil e, ao mesmo tempo, um futuro completamente diferente.
[Um dos casos que mais pode exemplificar o que Anna diz é o de Djamila Ribeiro. Mulher negra e de origem periférica, graduou-se em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo, em 2012, e tornou-se mestre em Filosofia Política na mesma instituição, em 2015. Ela é autora de livros best-sellers, como “O que é lugar de fala”, que teve mais de 50 mil exemplares vendidos, e coordenadora da coleção Feminismos Plurais, que já conta com seis títulos. Em 2015, ela escreveu o prefácio do livro “Mulheres, raça e classe” da filósofa Angela Davis, uma das maiores referências mundiais em feminismo. Djamila é conferencista internacional e já palestrou na sede da ONU, na Universidade de Harvard e na Universidade de Oxford. O campus Unifesp Guarulhos, que Djmila estudou, foi um dos inaugurados no governo do presidente Lula (2002-2010)].
Qual impacto você observa que programas como o ProUni, Fies, de cotas raciais e outros provocaram no Ensino Superior brasileiro?
O que entendemos com a pesquisa para o documentário é que a inclusão social que aconteceu por causa desses dispositivos é, mais do que tudo, uma inclusão de raça.
A Jéssica real não é branca, como no meu filme. A Jéssica é negra. E isso teve – e continua tendo – um impacto muito grande no tecido social brasileiro. Foi a partir desses dispositivos que os negros e as negras começaram a ocupar espaços de poder que antes não ocupavam, como, por exemplo, o ensino superior.
Acho que essa inclusão de raça foi a grande revolução que aconteceu no Brasil recentemente e espero que seja apenas o começo, apesar do governo eleito parecer não concordar com isso.
Você e sua equipe receberam mais de 500 histórias. Que perfil de alunos você encontrou? Que relação percebe que esses jovens têm com a universidade?
Nós queríamos ouvir as histórias e ouvimos. E elas são muito semelhantes. São as histórias dessas pessoas que nasceram num mundo e estão crescendo num outro mundo.
Pelo que senti, a universidade é apenas uma porta para uma plena realização pessoal e profissional. As “Jéssicas” que conheci na pesquisa e nas ruas são, em minha opinião, o que temos de mais rico e interessante no país hoje.
Como o fato de eles terem recebido bolsa de estudo do Estado, sobretudo nos governos petistas, repercute na visão que eles têm do PT e do Lulismo?
Isso eu não sei dizer, pois não focamos neste aspecto, mas, de maneira geral, sinto que são pessoas gratas aos governos do PT. Afinal, fazia séculos que os negros – apesar de serem a maioria em quantidade de brasileiros – não tinham acesso a espaços de poder e ali se iniciou um processo muito importante, que mudou a vida deles completamente em uma geração.
Qual foi sua reação à manifestação do ex-ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, de que a “universidade para todos não existe” e que esse espaço deveria ficar “reservado a uma elite intelectual”? [Dias antes de Emerge Mag entrevistar Anna Muylaert, o presidente Jair Bolsonaro demitiu Vélez e nomeou Abraham Weintraub para o Ministério da Educação]
É muito triste ouvir frases como estas vindas da boca de um Ministro de Estado, depois de ter conhecido tantos alunos e alunas universitários de qualidade humana excepcional, tanto aqui quanto fora do Brasil, pelo programa Ciência sem Fronteiras.
Acho que esse governo deveria sair às ruas e entender que “elite intelectual” é um conceito bem mais amplo do que eles estão pensando.
A propósito, você foi uma das principais vozes contra o golpe impeachment de Dilma Rousseff, como vê nosso cenário político atual?
Acho que a eleição deste novo governo tem muito a ver com o descontrole político que se sucedeu ao golpe de 2016. Uma vez que o país saiu da constitucionalidade, ao tirar a presidente por causa de “pedalada fiscal”, abriu-se uma porta para a eleição de um candidato sem história, sem projeto – e cuja eleição, em minha opinião, foi mais marcada por um ódio antipetista do que por uma vontade de construir algo novo. Ao contrário, às vezes, parece que o governo atual está tentando um retrocesso histórico, com homenagens a torturadores e medidas anacrônicas. Mas se o brasileiro elegeu esse governo, agora teremos que conviver com isso pelo menos até o final do mandato. E espero que aprendamos também com essa nova-velha realidade.
Na ocasião, dizia-se que você era uma das diretoras que produziriam um filme sobre o processo de Impeachment. Esse projeto vingou?
Sim, vingou. É um documentário chamado “Alvorada”, dirigido por mim e pela Lô Politi, sobre os bastidores no Palácio da Alvorada durante o processo de Impeachment. Estamos em fase de montagem e, na hora certa, vamos trazê-lo ao mundo. [Lô é também diretora de “Jonas”, filme vencedor do Prêmio Especial do Júri da mostra Novos Rumos no Festival do Rio de Janeiro de 2015].
Cinema para você é um processo pessoal? Como você escolhe seus projetos?
Sim, muito. Eu escolho meus projetos a partir de inquietações pessoais ou inquietações da sociedade ao meu redor.
A questão da criança, por exemplo, é central no meu trabalho. Eu acho que a educação é uma chave de transformação social que ainda não foi explorada em todo o seu potencial.
Como roteirista, quando pego roteiros dos outros para escrever, também preciso sentir que há algo ali que me move, que me instiga, senão não pego. Não consigo trabalhar sem o coração. Eu não conto história para boi dormir. Eu gosto de me meter em encrenca [risos].
O Ministério da Cultura foi oficialmente extinto em 1º de janeiro de 2019 e já presenciamos mudanças na Lei Rouanet. Qual é sua visão sobre a maneira que o atual governo trata a cultura?
São pessoas extremamente conservadoras que estão tentando diminuir o papel da cultura e dos artistas. No caso da Lei Rouanet, o cinema não é o seu maior beneficiário. A lei é mais usada para espetáculos e exposições – esses sim vão ter um cenário bem modificado com essa diminuição do teto de captação. O cinema se beneficia mais da Lei do Audiovisual (Lei 8.685, de 1993), editais federais, estaduais e municipais. Por enquanto, apenas o Doria [João Doria, atual governador do estado de São Paulo] parou o fomento no estado de São Paulo. O que vai acontecer com os outros dispositivos ainda está em suspenso.
Seu primeiro longa, “Durval Discos”, é de 2002. Como era viver de cinema no Brasil quando você começou e como é hoje?
Quando eu saí da ECA [Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo], antes que eu pudesse me articular para fazer um longa-metragem, o Collor (1989-1992) foi eleito presidente e extinguiu a Embrafilme [Empresa Brasileira de Filmes]. Passamos dez anos quase sem produção cinematográfica. A retomada só veio no final dos anos 90. Foi nesta época que filmei meu primeiro longa, o “Durval Discos”.
Depois veio um período de pujança, com a entrada do Fundo Setorial e de editais federais, estaduais e municipais. O cinema se fortaleceu e a produção se espalhou por todo o Brasil. Com isso, os profissionais cresceram em número e também em qualidade técnica e artística. Agora estamos num período de incerteza. Quando eu comecei a fazer cinema a coisa era incomensuravelmente pior do que hoje. Mas não sei como será no ano que vem.
Há quem reclame do fato do cinema no Brasil ser assim, “estatizado”.
Essa estatização é regra na atividade cinematográfica em quase todos os países do mundo, com exceção da produção feita nos EUA [Hollywood] e na Índia [Bollywood], que são grandes indústrias que se alimentam do próprio lucro.
Você fez parte da infância de toda uma geração com programas como “Castelo Rá-Tim-Bum” e “Mundo da Lua”, mas seu nome só ficou conhecido para o grande público a partir de 2015, com “Que horas ela volta?”. Como foi se ver como uma diretora famosa, quando essa posição parecia reservada apenas aos homens no cinema brasileiro?
Foi uma grande mudança na minha vida, justamente pelo fato de que entrei numa zona onde só tem homens. O que aconteceu comigo é chamado na Europa de “quebrar o teto de cristal”, ou seja, quando uma mulher ultrapassa os limites de poder comumente reservados para as mulheres. Ela sobe demais, quebra esse teto invisível e se corta. Assim, se por um lado foi ótimo, porque fui reconhecida pelo público brasileiro e internacional depois de anos de trabalho, por outro lado foi bem violento. Eu levava um susto atrás do outro.
Em 2016 você se tornou membro da Academia do Oscar. Ao longo dos últimos anos, temos visto a cerimônia do Oscar ser marcada por protestos pela igualdade salarial entre homens e mulheres. Você já tinha inquietações sobre a desigualdade de gênero no cinema ou passou a dar mais atenção ao assunto recentemente, conforme se viu dentro da discussão?
Depois do sucesso do “Que horas ela volta?”, entrei de cabeça nessa discussão, porque ela veio bater na minha porta. Quando uma mulher alcança um certo status dentro do mercado, ela não é bem vista. Ela se torna perigosa. Os homens de poder não sabem bem como lidar com ela, já que tudo é feito para eles brilharem e para elas apoiarem. Quando a mulher é protagonista, a coisa complica. O homem não tem o costume de “estar atrás da grande mulher”. Por isso, agora estamos falando, brigando, berrando até que isso se normalize.
Assim como a mulher apoiou o Grande Homem por milênios, agora também chegou a hora do homem aprender a fazer também o papel de coadjuvante – caso seja necessário.
(….)