As mães de Guaíba, os sonhos e as desilusões. Por Moisés Mendes

Atualizado em 20 de julho de 2025 às 11:46
Mulheres com crianças de colo. Foto: José Cruz/Agência Brasil

Duas fileiras de casas ao lado de um valo formavam uma vila de faroeste, antes da entrada da cidade de Guaíba, na Grande Porto Alegre. Foi esse o cenário que vi, uma única vez, há uns 15 anos, e não sei se ainda está lá desse jeito. No total, uma dúzia de casas num ambiente precário. Não vou dizer o nome do lugar, porque não lembro e não importa. O que interessa é o que aquela microvila não antecipava nada do que poderia acontecer mais tarde sobre o que ainda chamam de demandas sociais dos mais pobres. Conversei com quatro mães, para uma reportagem de Zero Hora sobre mulheres que criavam os filhos sozinhas. Uma delas criava quatro crianças.

As outras mulheres tinham companheiros e entram na história que vou contar porque todas olhavam com certa inveja para a mãe que, como se diz ainda hoje, não tinha um homem em casa.

Mas não olhavam por isso. Falavam dela como um ser diferente porque aquela mulher era a única na vizinhança habilitada a receber o Bolsa Família. “Ela é a rica daqui”, me lembro da frase de uma delas.

E aquela mulher sem homem, a dona Eunice, parecia feliz com o que recebia e que era muito menos, mesmo corrigido para valores de hoje, do que o mínimo de R$ 600 que o governo paga agora por família.

Eunice era rica. E se percebia que as outras se referiam a ela com admiração pela sua renda, porque elas não tinham filhos pequenos que lhes permitissem pegar o auxílio.

Com o aumento da ajuda, a partir do terceiro governo Lula, todas as Eunices ficaram mais ricas. E o Brasil passou a testemunhar fenômenos estranhos.

Menino apresenta o cartão do Programa Bolsa Família. Foto: Lyon Santos/Ministério do Desenvolvimento Social

O mais estranho talvez seja o que fez com que os beneficiários do Bolsa Família passassem a ser acusados de resignação com a pobreza. Pior ainda: que passaram a desfrutar da boa vida e deixaram de procurar emprego.

Empresários de todos os ramos, de restaurantes, do varejo e da indústria em geral, reclamam publicamente que o povo pega os R$ 600 por família, mais complementos de R$ 50 ou R$ 150 por filho, dependendo da idade, e se nega a aceitar ofertas de emprego.

Dizem isso no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, em Minas, no Amazonas. Querem que o governo corte benefícios. Acusam os pobres de terem desistido do trabalho em troca de R$ 600. Será mesmo assim?

Não será porque o nível de emprego é recorde nas duas últimas décadas? Não será porque os empresários pagam salários miseráveis? Ou pode ser porque as empresas aprenderam a fazer rodízios de empregados, com a reforma trabalhista?

Pode ser tudo combinado, com o acréscimo do crescimento do trabalho informal autônomo, mas certamente não é por preguiça.

Quando fui à vila de Guaíba, há 15 anos, eram 13 milhões de famílias que recebiam a ajuda. Hoje, são 20 milhões. E há ainda o vale-gás, as bolsas de estudos. Isso basta? Não basta. Mas os empresários acham muito.

E agora chegamos ao segundo fenômeno que ganha forma no ambiente das famílias pobres brasileiras. São muitos os indicadores de que os pobres querem mais do que ajudas, enquanto reproduzem cada vez mais os sonhos da classe média de que é possível fazer apostas em projetos que lhes assegurem outros caminhos e a prosperidade.

E esse é um sonho dos jovens, talvez os filhos de dona Eunice, e também dos mais maduros que ainda se consideram com idade para sonhar. A socióloga americana Michèle Lamont falou disso em entrevista à Folha esses dias.

Michèle conversa com pessoas que acreditam nos efeitos de ações que consideram disruptivas. Como Milei na Argentina, como aconteceu com Bolsonaro no Brasil e como acontece com Trump nos Estados Unidos.

Todos essas figuras corromperam a ideia de coesão de pessoas com interesses aparentemente em comum, para apostar em mágicas ou milagres e em conflitos entre os próprios pobres ou remediados.

Um caso que ela oferece como exemplar. Uma mulher de origem latina se dizia decepcionada com o Partido Democrata porque esse teria permitido a entrada de haitianos e venezuelanos nos Estados Unidos.

A mãe dela era imigrante e lutou durante anos para conseguir o green card e ser acolhida no país. Agora, os que chegavam de qualquer jeito acabavam competindo com ela. As políticas democratas de facilitação migratória conspiravam contra os ‘antigos’ imigrantes.

A filha da imigrante não se identificava com os ‘novos’ imigrantes, mas com os brancos americanos trumpistas. Porque ela era agora, com a vida regularizada, parte de uma ‘elite’. É uma evidência de que também é assim que funciona a hipnose da extrema direita.

O antropólogo argentino Alejandro Grimson acrescenta informações a esse fenômeno, para entender por que o pobre não quer mais ser visto como pobre, mas como alguém numa transição em direção a alguma outra coisa. Mas que coisa?

Nesse cenário de esvaziamento do sentimento de classe do trabalhador, de desorganização dos sindicatos, de perda de valor do emprego formal e do simbolismo de um diploma é que o pobre decide trocar o projeto de uma carreira estável pelo sonho da prosperidade com autonomia. E ouve e segue as vozes do fascismo dito disruptivo.

Assim as famílias ‘ricas’ do Bolsa Família já não se contentam com essa riqueza. E os dependentes das vontades absolutas dos capitalistas não disputam como antes as vagas oferecidas por empresas que funcionam como se estivessem ainda no século 20.

Combinam-se exploração, desilusão com os velhos empregos, transição para novos tempos e novas tecnologias, individualismo e o direito de sonhar. Ambições legítimas que têm quase sempre a extrema direita por perto.

O empresário não consegue entender a cabeça de quem não se dispõe a brigar por suas vagas miseráveis, e as esquerdas se atrapalham na compreensão dessas mudanças, que têm muito das ilusões fomentadas pelo fascismo.

Uma pequena vila ao lado de um valão já não é mais apenas uma vila, mas o retrato em mutação de um Brasil em movimento e ainda indecifrável.

Moisés Mendes
Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre, autor de “Todos querem ser Mujica” (Editora Diadorim) - https://www.blogdomoisesmendes.com.br/