As marcas e lacunas deixadas pelo vazamento de petróleo. Por Raíssa Ebrahim

Atualizado em 23 de dezembro de 2019 às 17:50

Publicado originalmente no Marco Zero

Por Raíssa Ebrahim

Marco Zero Conteúdo vem cobrindo desde setembro o desastre socioambiental do petróleo que atingiu a costa brasileira. De lá para cá, publicamos 25 matérias mostrando fatos e a visão de especialistas sobre o assunto. Você pode conferir todas as publicações clicando aqui para acessar a nossa seção especial “Óleo no Nordeste”.

Com a chegada do verão e o aumento do movimento nas praias, resolvemos mostrar os principais pontos ainda em aberto sobre o crime, que segue impune após quase quatro meses, em meio a fortes críticas ao Governo Bolsonaro. Em 2020, o assunto continuará na nossa pauta.

Investigações

Após quase quatro meses do maior desastre ambiental em extensão na costa brasileira, o crime ainda está impune. Fragmentos de petróleo ainda estão chegando em praias de Alagoas, da Bahia e de Sergipe. A população brasileira não sabe quem sãos os responsáveis nem como eles serão punidos. Tampouco conhece quando e de onde veio o vazamento de petróleo que atingiu mais de 900 localidades, segundo o Ibama, dos nove Estados do Nordeste, além do Espírito Santo e Rio de Janeiro. Mais de 5 mil toneladas de resíduos foram retirados das praias.

O clima de “ninguém sabe, ninguém viu” só piora, expondo ainda mais o Governo Bolsonaro. O sigilo das investigações reforça o contexto de insegurança e de encobertamento com fins políticos.

Primeiro o presidente e sua equipe construíram um discurso ideológico para culpar a Venezuela, divulgando que o petróleo tem DNA do país de Nicolás Maduro, apesar de, até hoje, nunca terem apresentado publicamente o resultado dessas análises feitas pela Petrobrás.

Depois o navio grego Bouboulina, da Delta Tankers, foi apontado pela Polícia Federal como o principal suspeito. No entanto, há duas semanas, o Ibama, através do Centro Nacional de Monitoramento e Informações Ambientais (Cenima), afirmou à CPI do Óleo, no Congresso Nacional, que o derramamento, na verdade, não foi feito pela empresa grega.

Há alguns dias, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que a origem do derramamento estaria no mar no sul da África. A nova diretoria bolsonarista do Inpe substituiu o antigo diretor Ricardo Galvão, exonerado após críticas ao governo por conta dos desmatamentos na Amazônia. Ricardo foi eleito um dos cientistas do ano pela renomada revista Nature.

Governança e transparência

“Por que quando constatado o incidente das manchas órfãs de óleo atingindo o litoral do Nordeste e do Sudeste, com grandeza de calamidade nacional, não foi ativado o Plano Nacional de Contingência (PNC)?”, questiona Yara Schaeffer Novelli, doutora e professora sênior da USP. Ela foi a perita judicial da primeira ação civil pública movida no Brasil por dano ambiental, em 1983, num rompimento de oleoduto da Petrobras na Baixada Santista.

O Governo Federal argumenta que colocou o PNC em prática, mas, na verdade, o plano, que deveria apontar as diretrizes a serem seguidas, se esfacelou em abril, quando o presidente Bolsonaro extinguiu os comitês executivo e de suporte.

“Essa providência teria garantido o ponto seguinte: ações coordenadas entre os entes federais, estaduais e municipais responsáveis por atuar em situações dessa magnitude, em todas as áreas cabíveis e com recursos providos pela União. Dessa forma, teríamos evitado perdas de recursos naturais e prejuízos socioeconômicos ao se debitar ações individuais e desarticuladas com os custos e demais encargos para municípios e estados, como estamos vivenciando e comprovando dia após dia”, detalha Yara.

Clemente Coelho, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE) relembra que, também como consequência, o Ministério do Meio Ambiente (MMA), coordenador máximo do PNC na sua forma original, terminou se esquivando das responsabilidades. “O Ministério do Meio Ambiente, em nenhum momento até agora, se colocou como o gestor dessa história”, resume.

O que está em prática é o chamado GAA (Grupo de Acompanhamento e Avaliação), composto por Marinha (órgão máximo), Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis e Ibama.

Clemente faz parte do grupo de pesquisadores que acredita na hipótese de que o petróleo se originou de algum acidente de navio entre 500 e mil milhas da costa brasileira, em águas internacionais. “Por que a morosidade em saber sobre esse navio? Isso levanta questões políticas.”

Pescados

As análises dos pescados contratadas pelo Governo de Pernambuco, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Agrário, numa parceria com UFPE, UFRPE e PUC Rio, ainda não foram totalmente divulgadas. Foram anunciadas, até o fechamento desta matéria, o resultado de 94 das 150 amostras previstas, contemplando 16 espécies de peixes, duas espécies de camarão, além de siri, aratu, ostra, marisco e sururu.

Duas espécies de peixes (xaréu e sapuruna, capturados em curral e covo, espécie de armadilha) apresentaram níveis de toxicidade equivalente em benzo[a]pireno superiores aos determinados pela Anvisa. secretário de Desenvolvimento Agrário de Pernambuco, Dilson Peixoto, anunciou que novas amostras dessas duas espécies foram coletadas e enviadas ao Laboratório de Estudos Marinhos e Ambientais da PUC para realização de contraprova.

Mesmo a maior parte dos produtos tendo sido atestada como própria para consumo, pescadores e pescadoras continuam com sérias dificuldades para vender.

A secretária-executiva de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco, Inamara Melo, anunciou, em reunião que frustrou a categoria, no início de dezembro, que o governo avalia fazer uma ampla campanha publicitária em janeiro, a depender dos resultados dos estudos e do aval do governador.

O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento diz que os pescados estão próprios para consumo, porém as análises foram feitas em produtos congelados coletados de peixarias. Portanto, a avaliação federal segue sem confiabilidade.

Pescadores e pescadoras

A categoria, que conta com aproximadamente 30 mil pessoas em Pernambuco, segundo o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), está ainda numa queda de braço com o Governo do Estado para conseguir algum auxílio local, que amplie o que foi proposto pelo Governo Federal.

Somente no final de novembro, o presidente Jair Bolsonaro publicou uma Medida Provisória (MP) para pagar um auxílio emergencial de R$ 1.996, divididos em duas parcelas. O repasse começou a ser realizado pela Caixa na semana passada.

O problema é que, segundo a MP, a ajuda só chega para quem tem o Registro Geral da Pesca, uma carteirinha que não é atualizada desde 2012, e vive em municípios diretamente atingidos.

Acontece que pescadores e pescadoras de localidades onde o óleo não chegou, a exemplo de Itapissuma, no norte pernambucano, também estão com sérias dificuldades de venda porque o consumidor não tem comprado pescado, independente do município. Na terra da caldeirada e da ostra, aproximadamente 8 mil pessoas vivem da pesca, segundo números do CPP.

O Governo de Pernambuco diz já ter em mãos um cadastro com cerca de 11 mil nomes – mais do que os cerca de 4 mil que têm direito ao auxílio federal -, mas alega não ter verba para ajudar a categoria.

A questão se agrava porque as famílias que não têm do que sobreviver estão se alimentando do próprio pescado sem saber se ele está ou não contaminado. O cenário, portanto, ainda é de insegurança alimentar quase quatro meses após a tragédia.

O CPP calcula que perto de 30% da produção pesqueira dos 13 municípios da Área de Proteção Ambiental (APA) dos Corais, entre Alagoas e Pernambuco, são consumidos internamente pelas comunidades pesqueiras.

No final da semana passada, o Ministério Público Federal em Pernambuco solicitou à União, através de ação civil pública, que o auxílio pecuniário seja ampliado a toda a categoria de pescadores e pescadoras.

Saúde

A contaminação por petróleo é altamente nociva à saúde porque envolve materiais tóxicos e os efeitos podem ser sentidos somente anos depois. Na avaliação da doutora em ciências médicas e pesquisadora titular aposentada da Fiocruz Lia Giraldo, a negligência com as questões de saúde é alarmante.

“Nunca vi uma coisa dessas, nem mesmo no período da ditadura militar em Cubatão (SP)”, afirma, apontando o atraso, a demora e a falta de organização e orientação dentro do sistema de saúde.

A professora relembra que as orientações foram feitas com muito atraso, quase dois meses depois do ocorrido, e de forma extremamente reduzida do ponto de vista da atenção integral à saúde. “Somente depois começaram a sair boletins sobre intoxicação aguda, então temos uma subnotificação enorme. Pernambuco foi o Estado que mais notificou graças à mobilização dos movimentos sociais e à sensibilidade de profissionais de saúde”, avalia.

Pioneira nos estudos sobre contaminação por benzeno (substância encontrada no petróleo), Lia se coloca bastante preocupada com a população que foi exposta e ficou assintomática. Essas pessoas correm o risco de não serem registradas e, consequentemente, monitoradas.

Segundo ela, o cadastramento em curso em alguns lugares está sendo feito sem um protocolo de acompanhamento de longo prazo. “Não é uma notificação compulsória, que ficará no sistema para daqui 10, 15, 20 anos”, explica.

Em reunião com o relator especial da ONU sobre direitos humanos e substâncias e resíduos tóxicos, Baskut Tuncak, que visitou Pernambuco no início deste mês, Lia expôs a questão: “O Brasil tem um sistema de saúde muito bem construído, assim como o sistema de vigilância em saúde, e a gente se depara com uma confusão na forma de lidar com essa questão nos estados e nos município por falta também de uma orientação do Ministério da Saúde”.

A Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) informa que continua monitorando os casos notificados de intoxicação exógena. Até o dia 15 deste mês, foram notificados 176 casos suspeitos – além de 21 registros que ainda estão sendo complementados para serem avaliados, por não possuírem informações suficientes.

Segundo a SES-PE, as pessoas já notificadas apresentaram sintomas leves, como cefaleia, náuseas, falta de ar, tontura e diarreia, com atendimentos ambulatoriais e sem a necessidade de hospitalização.

A secretaria também afirma que tem trabalhado junto aos municípios e a outras instituições para compilação e integração dos cadastros de pessoas expostas, sejam elas sintomáticas ou não, para acompanhamento futuro, assim como vem investindo na conscientização sobre a necessidade de busca ativa.

A dificuldade de integração de dados, segundo expôs representantes da pasta em reunião no Instituto Agronômico de Pernambuco (IPA), há duas semanas, é que não houve inicialmente uma padronização na hora de fazer esses cadastros.

O objetivo desses cadastro, diz a SES-PE, “é, em momento oportuno, por meio dos serviços municipais e cumprindo as diretrizes do Ministério da Saúde (MS), monitorar esses indivíduos em busca de possíveis impactos de longo prazo”.

Acontece que as orientações e diretrizes do MS têm sido falhas e insuficientes até aqui para o caso do petróleo. Por isso também a fragilidade de protocolos e fluxos de encaminhamentos e exames numa periodicidade necessária.

Afora isso, a SES-PE diz que equipes de vigilância em saúde, articuladas com os municípios, realizaram visitas técnicas nas praias onde houve mutirões de limpeza e nas respectivas unidades de saúde.

Outro ponto que incomoda a especialista Lia Giraldo, após quase quatro meses do desastre, é a falta de recursos para pesquisas na área de saúde. A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) anunciou, até agora, apenas R$ 1,3 milhão para esse fim.

Lia diz que Pernambuco foi o único Estado que abriu edital, através da Fundação de Amparo a Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco (Facepe). Dos 12 projetos aprovados, apenas um era da área de saúde. Os outros 11 eram ligados a questões ambientais.

Quem vive nos ambientes costeiros também é um fator de preocupação, sobretudo crianças e mulheres. Lia lembra que não se tem até o momento as análises da areia e do mangue.

Manguezais

A doutora em biologia marinha e professora da UFPE, Beatrice Padovani, alerta que ainda são necessários estudos de longo prazo sobre a pesca na costa e no alto mar. Isso porque, depois que o petróleo é removido, ainda ficam os impactos dos poluentes que podem atingir áreas costeiras e de mangues, que abrigam espécies juvenis, podendo causar consequências de longo prazo.

“Os ambientes costeiros já vêm sendo impactados há séculos por esgoto, agrotóxico e supressão de ambiente. O óleo é mais um impacto em cima do ambiente importante paraa manutenção da diversidade e da segurança alimentar”, criticou a especialista na reunião com o relator especial da ONU.