Por que as piadas dos chefes são tão populares nas redações

Atualizado em 10 de novembro de 2014 às 15:45
Thales e Mario Conti na redação da Veja nos anos 90

Abaixo, um capítulo de “Minha Tribo — o jornalismo e os jornalistas”. É o livro que estou finalizando sobre as experiências que tive em redações, e sobre a minha visão de jornalismo. Ele será lançado até o final deste ano.

Um tipo comum que você encontra nas redações é o que ri de acordo com quem conta a piada, e não com a piada em si.

Para mim, esta é uma das marcas mais vívidas de Mario Sergio Conti. Trabalhamos na redação da Veja nos anos 80. Dali eu saí para a Exame, e ele permaneceu até se tornar diretor de redação.

Humor fluido traduz caráter também fluido.

Mario era um dos tipos mais mal humorados da Veja. Magro, sempre com um cigarro nas mãos, passava todos os dias pelo corredor da redação sem cumprimentar ninguém exceto os superiores. Não sem algumas razão, um jornalista que conviveu com ele na seção cultural da Veja, Luís Antônio Giron, o definiria depois — ao descrever a equipe como se se tratasse de animais — como um corvo.

Mario guardava suas risadas nervosas e entrecortadas para tiradas de chefes como o diretor de redação José Roberto Guzzo e o adjunto Elio Gaspari. Uma vez, quando ele era editor de artes e espetáculos e eu da Veja São Paulo, fiz uma resenha do livro Só Deus Sabe, de Joseph Heller. Era um romance satírico sobre o Rei David. Quem tinha me pedido que resenhasse era a chefe de Mario, Dorrit Harazim, de cujas graças ele ria também.

Dorrit, mulher de Elio, era brilhante e dura como poucos. Só a vi falhar uma vez como jornalista. Foi quando ela foi cobrir em Londres o casamento entre Charles e Diana. Seu texto, enviado por telex, teve que ser reescrito por Ricardo Setti. Sobre sua dureza, a melhor evidência é uma cena com o mesmo Setti. Setti, editor de Internacional, respondia a Dorrit, editora executiva.

Num fechamento,  Setti tinha dispensado, já no começo da madrugada, duas jornalistas que trabalhavam sob ele. Elas estavam no corredor da redação, a caminho do elevador, quando passaram em frente à sala de Dorrit. Dorrit perguntou a elas onde iam. Quando ouviu que elas iam embora, mandou que voltassem.  Setti — de quem me lembro a curiosidade de que ele tinha um banco de lides para todas as circunstâncias — pediu demissão naquela madrugada mesmo.

Tão temida era Dorrit que um tarimbado redator da revista, quando sob sua chefia na seção de Internacional, punha as mãos no escapamento do carro dela, no pátio da Abril, para ver se ela chegara muito antes que ele.

Demitida depois da última legenda

Escrevi a resenha de Heller e passei a Mario para que ele lesse e fechasse. Eram laudas, ainda. Sem mexer o rosto por um segundo, Mario me perguntou algumas vezes qual era a graça de certas passagens. Não que eu seja um comediante. Mas eu transcrevera piadas de Heller, um dos maiores escritores “cômicos” americanos do século passado. (Só Deus Sabe é talvez o romance mais engraçado que li na vida, com o Rei Davi de Israel conhecendo biblicamente Betsabá com volúpia ferozmente divertida.) Eu já estava desistindo de explicar quando fui salvo pela chegada de Dorrit. Ela pediu as laudas a Mario, leu a resenha e riu, em aprovação. Jamais esqueceria aquele episódio pelo que ele revelara de Mario.

O caráter fluido se revelaria em várias ocasiões, de maneira menos cômica.

Mario cometeu uma das demissões mais abjetas que vi em minha carreira. Ele era editor da seção de Brasil, que reunia política e outros assuntos brasileiros. Numa sexta-feira de fechamento, ele esperou que uma jovem integrante da editoria terminasse todo o seu trabalho. Isso significava fechar a última legenda, ou coisa parecida, num momento em que o sol de sábado já estava se anunciando.

E então a demitiu. Ali mesmo. Naquela hora. Depois de uma jornada de quase um dia inteiro.

A jornalista, como ele e eu iniciando a carreira, se chamava Míriam. Míriam Leitão. Mais tarde, ela se tornaria, nas Organizações Globo, uma das jornalistas mais conhecidas do Brasil, uma espécie de rainha das donas de casa em busca de conselhos sobre como lidar melhor com a escassez do orçamento.

Mario era aquele chefe que ninguém queria ter.

Nossos caminhos quase se cruzaram, depois, por acaso. Ele estava prestes a ser demitido da Veja e eu liderava, como diretor de redação da Exame, as bolsas de apostas sobre quem o substituiria. Sua saída, acertada num final de ano, se daria em meados do ano seguinte. Mario precipitou as coisas e destruiu o planejamento sucessório ao chamar os editores executivos da Veja a sua sala e anunciar, meses antes do estipulado, que sairia.

Disse, à platéia surpresa e amedrontada, que não tinha controle sobre sua sucessão. Não ficara nem um pouco satisfeito ao ouvir meu nome. Tínhamos estilos e idéias completamente diferentes. As notas de jornais que saíram naqueles dias traziam dois nomes como os prováveis sucessores de Mario: Marcos Sá Corrêa, um dos discípulos cariocas mais talentosos de Elio Gaspari, e eu.

A escolha acabou sendo interna mesmo: Thales Alvarenga, diretor adjunto, um mineiro que compensava a falta de cultura e de criatividade com uma dedicação ao trabalho fora do comum e uma boa habilidade para fazer as coisas do dia a dia de uma redação: colocar textos no tamanho, dar título às matérias, fazer legendas etc.

Thales, quando soube que seria eu o diretor, entrou na sala de Roberto Civita para pedir demissão. Saiu de lá diretor. O que ele terá dito ali para mudar tanto a situação? Jamais saberemos, dado que ambos estão mortos. É provável que ele tenha dito que era contra as coisas que Mario vinha fazendo na Veja e que desagradavam RC — desde o tamanho longo de muitos textos até críticas ao processo de privatização.

Civita também estava claramente incomodado com a postura imperial que Mario assumira depois do Caso Collor, em que a Veja comandou as denúncias — muitas delas jamais provadas — que levariam ao impeachment. A Abril não era tão grande assim para ter dois derrubadores de presidente.

Circulavam na empresa comentários sobre episódios como o dia em que Roberto Civita foi com amigos à redação para falarem com Mario sobre Collor. Mario, com um gesto, deteve os visitantes na entrada de sua sala. Estava conversando ao telefone com Claudio Humberto, assessor de imprensa de Collor.

Civita teve que esperar muitos minutos para ser atendido por Mario, uma provação tornada ainda mais dura pela presença de testemunhas que viram a baixa consideração do diretor da Veja pelo patrão. Isso não podia durar muito tempo, e não durou. Mario era um editor já morto em seus últimos meses no comando da Veja. Multiplicavam-se as queixas contra ele, e já estava claro que a revista sob ele perdera imensamente em qualidade em relação à gestão anterior.

Quase todos os dias, quando eu subia os elevadores da Abril, alguém me perguntava: “Quando você assume a Veja?” Internamente, havia uma grande torcida por mim na Abril, da qual eu próprio não fazia parte. Eu estava imensamente feliz como diretor de redação da Exame, meu melhor período no jornalismo antes da experiência incomparável do DCM.

Thales morreu antes que pudéssemos conversar sobre o episódio, com a tranquilidade que a passagem dos anos traz. O que me chamou a atenção foi o sentimento de culpa que ele parecia ter em relação a mim. Trabalhamos juntos, no começo dos anos 2000, no Comitê Executivo da Abril, sob a chefia de Maurizio Mauro, então presidente executivo da empresa. Num seminário de planejamento no interior de São Paulo, Maurizio falou um dia longamente das atribuições que gostaria de ver num executivo. Thales pediu a palavra. “A gente fica falando tanto de pessoas lá de fora quando temos um cara aqui como o Paulo Nogueira”, disse Thales.

Não era a primeira vez que ouvia, do nada, uma manifestação pública de admiração de Thales, quase 15 anos mais velho que eu. A única razão que encontrei para tanto foi a sucessão na Veja, em que ele não era cotado e eu era quase certo. Talvez ele tenha dito coisas sobre mim, na conversa famosa com Civita, que lhe pesaram depois na consciência.

É certo que a velha guarda da revista estava em polvorosa com a perspectiva de minha ida. Eu mudara muitas coisas na Exame ao dirigi-la, e era fácil perceber, por aquelas mudanças, as que eu faria na Veja caso fosse efetivado.

O que quer que Thales e Roberto tenham falado, o fato é que Thales entrou demissionário na sala de Roberto — um duplex impressionante — e saiu dela com o cargo com o qual tanto sonhara.

Dorrit era admirada e temida

No decorrer dos anos, ouvi algumas vezes a mesma pergunta: não ter ido para a Veja naquele momento me frustrou? A resposta sempre foi imediata e genuína: não. Eu vivia meus melhores anos na Exame. Tudo parecia dar certo. Não tinha vontade nenhuma de sair, mesmo que fosse para a Veja. Àquela altura, meados dos anos 90, a Veja já não exercia o mesmo fascínio que tivera sobre mim na década anterior. Eu sabia que para levar o espírito da Exame para a Veja teria um trabalho imenso e de resultado incerto. “Não se faz revolução sem revolução”, disse Robespierre. Teria que mudar pessoas e fazer uma cosia que eu conseguira eliminar na Exame: avançar nas madrugadas. Os caciques da redação sabiam disso, e não estavam confortáveis com a possibilidade de que eu os chefiasse. Thales queria, muito mais que eu, ser diretor da Veja. Houve uma justiça poética em que, contra todos os prognósticos, ele tenha afinal sido o escolhido para erradicar a revista das malvadezas que Conti tinha posto nela.

Mario, demitido, ganhou como prêmio da Abril um período em que recebeu sem ter que trabalhar. Escreveu, então, Notícias do Planalto, em que narra a queda de Collor, que cobriu da posição privilegiada de diretor da Veja. Como de hábito, Mario jogou veneno e louvores seletivamente no livro. Foi baixo em relação a um homem que bajulara intensamente enquanto fora chefiado por ele: Guzzo, sobre quem despejou calúnias. Não era a primeira vez que ele mordia a mão de quem o alimentara.

Com Mário Watanabe e Píndaro Camarinha na Exame: nunca fui tão feliz em minha carreira

Uma das cenas marcantes de minha carreira foi a entrada de Mario na redação da Exame, onde Guzzo estava depois de sair da Veja, para avisá-lo de que a revista publicaria uma reportagem de alguma forma desconfortável para ele. Cigarro na mão, levemente curvo, Mario ao caminhar pela redação da Exame em direção a Guzzo parecia imaginar que uma facada poderia ser mitigada com o anúncio de que seria dada.Em Notícias do Planalto, Mario tomou o cuidado de tratar com delicadeza os donos das empresas de mídia. Pouco depois, trabalharia na Folha. Em sua busca incessante de Mecenas, ele acabaria encontrando um num milionário com pretensões intelectuais, João Moreira Salles.

Desse encontro surgiria uma das revistas mais superestimadas do Brasil: a Piauí.