As mentiras da CPI da Covid e os jogos niilistas em 7 atos. Por Lenio Streck

Atualizado em 31 de maio de 2021 às 12:32

Publicado na ConJur

CPI da Covid. (Jefferson Rudy/Agência Senado)

Por Lenio Luiz Streck

1. De como se cometem gestos extraordinários…!

Ouvindo os depoimentos na CPI (Pazuello, Wajgarten, Araujo e Mayra), fico pensando: por qual razão essas pessoas não são contratadas para ensinar réus a enrolarem o juiz em interrogatórios? Ou: por que não abrem um curso de niilismo? Lembremos que o suprassumo do niilismo está no personagem Raskólnikov, de Crime e Castigo (Dostoiesvski). Explico: Depois de matar a dona da pensão, Ralkólnikov diz: eu cometi um gesto extraordinário. Transcendeu a moralidade convencional dos homens comuns, dos coitados. Ele, Raskólnikov, não: ele se considerava superior a tudo aquilo.

Incrível como isso se encaixa: Pazuello, Wajgarten, Araujo e Mayra nada admitem, negam tudo, dão dribles retóricos, como que a dizerem: nós cometemos gestos extraordinários para ajudar o Brasil!

A questão é que, no famoso romance de Dostoievski, o personagem Raskólnikov matou a velha usurária e a coitada da irmã que nada tinha a ver com o assunto. Daí a minha pergunta: qual é o saldo de nossos mortos mesmo? Raskólnikov tirou suas ideias niilistas de livros e tinha um busto de Napoleão. Aqui, nossos pequenos Raskólnikovs leram bula de cloroquina e têm como ídolo um comerciante que se veste de Zé Carioca e que faz Tik Tak com Tirulipa.

2. E as pessoas se grudavam nas pernas da doutora

A dra. Mayra, secretária do Ministério da Saúde, esmerou-se. Primeiro exaltou o seu próprio trabalho na crise de Manaus. Disse que isso ficará marcado na história. Claro, Doutora. Claro que ficará. As pessoas morreram por falta de ar. Agonizando. Foi um gesto extraordinário do Ministério da Saúde. Ela diz que o Ministério fez um excelente trabalho. Minutos depois diz que as pessoas se penduravam nas suas pernas porque estavam agonizando. E nega que tenha podido perceber que ali existia o caos. Extraordinário isso. Um “gesto extraordinário”. Inclusive quanto ao tapete e o pênis da/na Fiocruz.

3. Truques retóricos “off label”: “Eu preciso contextualizar”…!

Palavras como “preciso contextualizar”, truques retóricos, enfim, dribles da vaca aplicados off label. O sujeito que treinou os depoentes ensinou que cada resposta tinha que começar com “deixa eu mostrar o contexto”. É claro: “o contexto” explica qualquer coisa. Vamos ver “o contexto” de Raskólnikov. Claro.

Por que nenhum senador perguntou sobre o contexto de mais de 450 mil mortes… Qual seria o contexto? Qual é o contexto de quem morreu sem ar em Manaus?

Com as lições de rebimbocas das parafuzetas dos depoentes, um interrogatório sobre furto poderá ser (depois das aulas com os professores Araújo, Mayra, Pazuello e Wajgarten) assim:

Juiz pergunta: ” — O senhor praticou o furto?”

Resposta: ” — Preciso contextualizar. Na verdade, no âmbito do direito de propriedade em um país periférico e levando em conta a distribuição de determinados bens, penso que o aliviamento de pequena parcela do patrimônio pretensamente pertencente à vítima é contestável em termos de análise off label da Lei Penal (off label é legal, não?). Porque primeiro a vítima terá que demonstrar que… blá, blá. Ao final, de forma contextual… provavelmente a vítima…”

Sim, é tudo uma questão de “contexto”. O “contexto” explica. Explica tanto que explica qualquer coisa. E já não explica nada. Ou seja: é a desculpa perfeita para quem é indesculpável. Qual “contexto” explica esse espetáculo de mentira num país que já não tem mais onde enterrar seus mortos?

4. De como “não recomendamos e só orientamos”

A Dra. Mayra simboliza off label o contexto (ups) dos truques retóricos. O auge foi: nós não recomendamos o uso de cloroquina; só orientamos. Bingo! Agora a vítima foi a língua portuguesa. Deve ter sido o princípio da ipseidade. O princípio da ipseidade é o contrário do princípio da mesmidade (também conhecido como princípio da identidade-idem).1 O “contexto” explica essa frase? Não recomendamos, só orientamos, diz a “doutora”. Genial.

5. Como se reprime excentricidades e tolices (ou não)

Dia desses o Helio Schwartsman lembrou como o filósofo Henri Bergson mostrou que o medo de se tornar objeto do riso alheio faz com que o indivíduo reprima suas excentricidades. Ninguém quer virar piada. Quer dizer… é mais ou menos assim.

As redes sociais ajudam a que uma sandice ou um conjunto de enrolações (embromations) tenha terreno fértil para se desenvolver.

Uma coisa que antes era motivo de vergonha agora tem apoio e por isso “se sustenta”. É aquela história do idiota que encontra outro idiota e diz: você me representa porque pensa como eu. E, é claro, na sequencia abrem um grupo de whatsapp.

Hélio lembra o exemplo de teses como terra plana. Era ridícula… e agora possui milhares ou milhões de adeptos.

6. De como só a vergonha pode (nos) salvar

O sentimento da vergonha antigamente produzia bloqueios e recuos. No livro de Kwame Appiah, O Código de Honra, consta como algumas práticas envergonhantes foram abandonadas a partir do constrangimento que causavam. O constrangimento é uma arma poderosa. Por isso é que criei um verbete chamado constrangimento epistemológico no meu Dicionário de Hermenêutica.

Explicando o Código de Honra de Appiah: durante mais de mil anos os pés das meninas chinesas eram atados, para que não crescessem e ficassem pequenos e delicados, em torno de 7,5 centímetros. A prática durou mais de mil anos e acabou em rápidos 20. Appiah pesquisou e descobriu que outros países estavam se inteirando desse hábito chinês e o repudiavam. Isso constrangeu enormemente os chineses. E foi decisivo. No século XIX, um funcionário chamado Kang consegue convencer o establishment chinês de que a prática de atar os pés era, além de todos os males, ridícula e envergonhante. E o fez comparando outros povos que não amarravam pés. Assim também ocorreu com os duelos na Inglaterra.

Talvez no Brasil as péssimas práticas de não usar máscaras, recomendar tratamentos precoces mequetrefes e coisas do gênero pudessem ser alteradas porque elas nos envergonham e, porque, para outros povos, soam como ridículas. E isso deverá nos causar constrangimentos de tal monta que abandonaremos essa prática. Um deputado do RS chega a sustentar que o uso de máscara agravou o câncer de Bruno Covas. Realmente, só a vergonha pode nos salvar…

7. A “convicção” acerca dos gestos extraordinários

Com meus botões, fico pensando em Crime e Castigo e o niilismo de Raskólnikov. Parece que os personagens atuais estão convictos de que estão cometendo gestos extraordinários.

Gestos extraordinários. Qual é mesmo o “contexto”? É mesmo extraordinário. Ou bem ordinário. A diferença entre as duas coisas é uma questão de… contexto.

Se alguém ainda não sabe o que é niilismo, perguntem para os professores aqui nominados. Especialistas. Extraordinários.


1 Para usar uma epistemic irony: Principle of ipseity (ou Selfhood); o seu antípoda é o principle of sameness. Ver, para tanto, Research Pool on the principle of selfhood – Shimun University Press and Prelinsky Press in press – in chief: Prof. J. Ring