As Patas na Fonte, três quartos de século depois. Por Gilberto Maringoni

Atualizado em 11 de dezembro de 2019 às 7:06
As Patas na Fonte, três quartos de século depois. Foto: Reprodução/Facebook

Publicado originalmente no perfil de Facebook do autor

As fotos foram feitas no mesmo lugar, com uma diferença de 74 anos.

A da esquerda foi clicada em 17 de outubro de 1945 numa das fontes de água da praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino. Não se sabe o nome do autor. Tornou-se conhecida pelo título “Com as patas na fonte”, dado pela imprensa conservadora.

A da direita é minha e foi batida neste 10 de dezembro de 2019.

A PRIMEIRA TORNOU-SE ícone do nascimento do peronismo. Naquele 17 de outubro, o coronel Juán Domingo Perón (1895-1974) seria libertado da prisão que sofrera cinco dias antes, ainda como titular da Secretaria do Trabalho e da Provisão Social, órgão com status de ministério. O militar havia se articulado com movimentos sociais e liderara a criação de inúmeras leis trabalhistas, num movimento semelhante ao que Getúlio Vargas promovera no Brasil, em 1943.

Perón participava de um governo resultante de um golpe de Estado, liderado pelo general José Félix Uriburu. Expressava um pacto interno às forças armadas, entre setores nacionalistas e pró-Estados Unidos, no clima do final da II Guerra Mundial e advento da Guerra Fria.

Percebendo a divisão no comando do país, a principal central operária – a CGT – estabelecera um pacto com os nacionalistas. O expoente aqui era justamente Perón.

DESDE O DIA 16 DE OUTUBRO, estima-se que 300 mil trabalhadores e suas famílias saíram de subúrbios e bairros populares para tomar o centro da capital, exigindo a libertação do ex-Secretário e a manutenção dos direitos conquistados.

Diante da exuberante manifestação, houve um acordo entre as facções militares. O coronel seria solto caso discursasse na sacada da Casa Rosada e buscasse desmobilizar os trabalhadores. Em fulgurante intervenção, transmitida por rádio a todo o país, Perón faz algo mais. Anuncia a realização de eleições presidenciais no ano seguinte e lança ali sua candidatura. O 17 de outubro tornou-se feriado nacional e a data inaugural do peronismo.

O QUE TEM A FOTO a ver com isso? Ela exibe trabalhadores exaustos e suados relaxando num dos marcos do poder oligárquico. É um ícone de rebeldia.

Alejandro Grimson, em seu “Que és el peronismo? sublinha que a imagem “mostra “homens, mulheres e crianças. (…) A heterogeneidade [do movimento dos trabalhadores] esteve à vista de todos, mas quando emergiu à plena luz do dia, foi arrasada [pela direita]”. Um escândalo! A turba, a chusma, a gentalha entrava definitivamente e com muito barulho na vida política.

NO DIA DA POSSE de de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, a imagem me bateu na cara, ao vivo e a cores ao perambular pela praça. Os continuadores de 1945, os prejudicados não mais pela oligarquia da carne, mas pela plutocracia financeira “colocaram as patas na água”. É notável que agora, nem água haja mais nas fontes. Sequer as aparências o neoliberalismo se preocupa em manter.

Sete décadas atrás, quando o povo colocou “as patas n’água”, a Argentina mudou. Sei bem que a história não se repete, mas a força do registro visual não deve ser esquecida.