As vozes (não mais silenciadas) de Chernobyl. Por Luísa Gadelha

Atualizado em 19 de junho de 2016 às 21:36

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Finalmente chega às livrarias brasileiras a obra da escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura em 2015 “por seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nossos tempos”. Svetlana foi uma das raras pessoas a ganhar o prêmio por livros de não ficção – o último havia sido Winston Churchill, em 1953. A academia sueca também surpreendeu em 2013 ao premiar a canadense Alice Munro, que só publicou contos.

Nascida em 1948, na Ucrânia, Svetlana Alieksiévitch seguiu carreira jornalística, tendo escrito sobre acontecimentos da União Soviética, como o desastre de Tchernóbil e a invasão russa no Afeganistão. Em uma de suas entrevistas, ela disse: “Estive buscando por um método literário que permitisse o máximo de aproximação da vida real. A realidade sempre me atraiu como um ímã, me torturou e me hipnotizou, e eu quis capturá-la no papel.” (Tradução livre)

Para escrever seu Vozes de Tchernóbil (Companhia das Letras, 383 páginas, tradução do russo de Sonia Branco), que chegou ao Brasil no último mês, Svetlana Aleksiévitch levou quase dez anos. Entrevistou testemunhas do desastre, desde camponeses e moradores locais a imigrantes, autoridades do partido comunista, cientistas, bombeiros e pilotos.

É a compilação desses relatos lancinantes, comoventes e enternecedores que perscrutamos em seu livro; como a própria autora destaca, ela não procura fazer uma história de eventos – que já tem sido feita há tanto tempo -, e sim uma história de emoções. “Eu me dedico ao que chamaria de história omitida, aos rastros imperceptíveis da nossa passagem pela Terra e pelo tempo. Escrevo os relatos da cotidianidade dos sentimentos, dos pensamentos e das palavras”, diz, numa parte do livro em que entrevista a si própria.

A catástrofe nuclear de Tchernóbil, ocorrida em abril de 1986, é considerada o mais grave desastre tecnológico do século XX. A radiação se espalhou, chegando a ter ecos em outros continentes. Os radionuclídeos ainda viverão mais de cinquenta, cem mil anos – por isso, o subtítulo do livro: Crônica do futuro. O acidente causou na população bielorrussa câncer, deficiência mental, mutações genéticas e disfunções neuropsicológicas.

Belarús (ou Bielorrussia) era um país rural, e grande parte da população, agrária, continuou vivendo em território contaminado após o acidente. Muitos estavam preparados para a guerra, mas não conseguiam assimilar um desastre invisível, a radiação. Assim, parte da população insistiu em permanecer em suas casas. As comparações das testemunhas e dos sobreviventes com a Segunda Guerra Mundial é recorrente nos relatos.

O primeiro depoimento, que abre o livro, é extremamente tocante. A viúva de um bombeiro conta como o marido foi chamado para conter o incêndio e como o acompanhou ao hospital, depois, durante os seus dias de agonia até vir a falecer. Outro relato marcante é o da mãe da “menina-saquinho”, uma bebê nascida após o acidente sem nenhum orifício, apenas os olhos abertos. Ou, ainda, a moça de Tchernóbil que é rejeitada pelo pretendente por causa de sua herança genética (“parir um filho é pecado”).

Por outro lado, também é comovente observar que o povo soviético, apesar da tragédia, conseguiu preservar um pouco de otimismo e bom humor. Em vários testemunhos, nos deparamos com piadas (“Um preso foge do cárcere e se esconde na zona dos trinta quilômetros. É apanhado. Levam-no aos dosimetristas. O sujeito “arde” tanto que não podem levá-lo nem à prisão, nem ao hospital, nem aonde haja pessoas”; “O melhor remédio contra o estrôncio e o césio é a vodca Stolítchnaia”; “Agora os mercados estão cheios de radioprodutos”; “Os impotentes se dividem em radioativos e radiopassivos”).

Ao dar voz a essas pessoas comuns, Svetlana Aleksiévitch permite que enxerguemos um outro lado da história, contado de dentro, de quem vivenciou os eventos, e que deles carregam ferimentos, mas também perspectivas de prosseguir – que outra alternativa nos resta?

Vozes de Tchernóbil foi publicado em 1997 e faz parte de um projeto maior da escritora, Vozes da Utopia, que pretende relatar os diferentes aspectos do cotidiano soviético, como no livro Zinky Boys: Soviet Voices from the Afghanistan War (ainda sem tradução para o português) e A Guerra não tem rosto de mulher, que será lançado no final do mês, na FLIP, onde Svetlana disserta sobre o papel das mulheres que lutaram no Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial.

Vozes de Tchernóbil deu origem a um filme, The Door, que concorreu ao Oscar em 2010 na categoria de curta metragem. Ao ler seus tristes relatos, impossível não lembrar do poema Rosa de Hiroshima, de Vinicius de Moraes. Embora se refira a outra tragédia, algumas dores são universais. (Pensem nas crianças / Mudas telepáticas / Pensem nas meninas / Cegas inexatas / Pensem nas mulheres / Rotas alteradas / Pensem nas feridas / Como rosas cálidas / Mas oh não se esqueçam / Da rosa da rosa / Da rosa de Hiroxima / A rosa hereditária / A rosa radioativa / Estúpida e inválida / A rosa com cirrose / A antirrosa atômica / Sem cor sem perfume / Sem rosa sem nada)