
O vôo VJT199, que saiu do aeroporto de Standstead em Londres na segunda e que levava o jornalista e editor Julian Assange, aterrissou nas ilhas remotas de Saipan, no Oceano Pacífico.
Assange se opôs a viajar aos Estados Unidos para firmar o acordo que lhe fará um homem livre, e foi levado a esse território, parte da empreitada expansionista americana na região como estratégia de sua guerra híbrida contra a China.
Ele assinará um acordo diante de um juiz americano, e por fim seguirá para a Austrália como um homem livre. Deve chegar a Canberra no dia 26 às 18:41 no horário local.
Assange se declarará culpado do crime de conspiração com Chelsea Manning por obter e disseminar de forma ilegal informações confidenciais de segurança nacional dos Estados Unidos, em contravençāo com o Artigo 18 da Lei de Espionagem de 1917. Sempre há um preço para a liberdade.
Sara Vivacqua, advogada e jornalista do DCM, foi peça fundamental da campanha oficial de libertação de Assange em Londres. Deu reconhecimento mundial ao caso ao inquirir o presidente Lula numa coletiva em Londres, mas seu maior trabalho foi realmente o da diplomacia nos bastidores, que ela conta em exclusividade ao DCM:
Stella Assange viajou à Australia com os dois filhos um dia antes de Assange embarcar e apenas um grupo muito restrito tinha conhecimento disso, como o editor chefe do Wikileaks e talvez seu pai. A produtora pessoal de campanha da Stella, seu melhor amigo e os demais sabendo da notícia pelas manchetes.
Segundo Stella, esse acordo tornou-se possibilidade na semana passada, no dia 19, mas como realidade apenas nas últimas 72 horas e tudo se desencadeou muito rápido. Até então tudo permanecia incerto.
As negociações deste acordo começaram no ano passado, envolvendo vários advogados, e por ser uma estratégia confidencial, nunca falei em público sobre isso. Até que uma entrevista do ex-agente da CIA, John Kiriakou, revelou ao jornalista Pedro Zambarda no DCM a existência de tais negociações. Depois seguiram-se comentários especulativos, mas a liberdade de Assange era mais importante e, claro, me cabia proteger esta informação. Na minha opinião essa era a única saída plausível para a sua liberdade, mas com resultados muito incertos e que só teria impulso para acontecer se a pressão política escalasse.
É preciso lembrar o contexto em que Lula e o então presidente Obrador, do México, falaram em favor de Assange pela primeira vez. Assange era um tabu e um alto risco político. A campanha tinha uma enorme dificuldade de mobilizar a opinião pública naquele momento devido a uma coordenada e extensa onda de difamação. Os ativistas pró-Assange eram atacados e muitas instituições negavam eventos ou convites com palavras rudes.
Havia barreiras com parlamentares europeus, americanos e britânicos. Assange era um lixo atômico e era imperativo de sobrevivência se manter distante. Nenhum cabeça de Estado europeu ou americano até hoje se pronunciou em favor da causa de Assange, que transcende a sua pessoa e abala os alicerces de toda democracia. Houve muitas manifestações de hostilidade, desde Trump, seu vice Pence, e até um juiz do caso.
Com a vitória de Lula, o editor-chefe do WikiLeaks, Kristinn Hrafnsson, me chamou para organizar um tour na América Latina. Ele tinha a compreensão ou intuição de que havia um mundo capaz de entender um vocabulário que soava fantasioso para o público europeu com sua fé ainda que residual no sistema. A América Latina tinha escrita na sua história o que a CIA era capaz de fazer, por exemplo.
Ele me perguntou se era correta a percepção, pois muitos dentro da campanha não viam a importância de buscar aliados fora dos países diretamente envolvidos na perseguição a Julian. Eu tinha plena convicção de que a luta tinha que ser verdadeiramente internacional e que a América Latina poderia fazer a diferença. Principalmente porque o Brasil tinha uma experiência muito recente de uma mesma forma de perseguição política pelo Departamento de Estado e Departamento de Justiça norte americanos, a Lava Jato. Nós já tínhamos no vocabulário da experiência a palavra lawfare. Nós tínhamos um acúmulo cívico na luta de libertação de Lula, e nós tínhamos um êxito social extraordinário neste sentido.
Fizemos as malas num ambiente de muita descrença. O presidente Gustavo Petro nos recebeu na Colômbia a partir da articulação do brasileiro Amauri Chamorro. Lula nos recebeu já como presidente eleito em meio a um dos momentos mais conturbados do governo de transição e depois de passar por uma cirurgia. Aqui tenho que prestar minha imensa gratidão à equipe do Lula, em especial ao assessor José Chrispiniano, que sempre atendeu meus pedidos e telefonemas. Um homem de grande paciência.
Era a primeira vez que o WikiLeaks era recebido por chefes de Estado. Esse era um marco, pois Obrador tinha recebido a família de Assange, que poderia ser visto como um gesto humanitário. Mas receber o WikiLeaks era uma posição muito mais audaz em conteúdo, pois implicava em declarar Assange preso político dos EUA e Reino Unido, vítima de uma perseguição, e implicava numa denúncia política frontal por chefes de Esatdo contra os países que o perseguiam.
Um dia depois da recepção pelo presidente Lula, o primeiro- ministro australiano saiu a público no parlamento australiano e declarou que o caso de Assange já tinha ido longe demais. Não creio que fosse mera coincidência, mas o encorajamento que faltava. Lula é sem sombra de dúvida um dos grandes líderes mundiais de nosso tempo.
Alberto Fernández, Cristina Kirchner, Luis Arce e Obrador logo depois do encontro com Lula, aceitaram o pedido de receber o WikiLeaks.
Uma onda de apoio inédita se fazia na América Latina, que contrastava com o silêncio das demais autoridades de outros países.
Durante estes anos guardei uma parte da conversa com Lula, que foi tocante, mas naquele momento era confidencial. Lula prometeu conversar com Biden, presidente dos EUA, sobre Assange.
No Brasil, João Pedro Stédile e o MST organizaram a agenda parlamentar e cultural do WikiLeaks que resultou em uma resolução na Câmara e outra no Senado em favor de Assange, encontro com grandes nomes brasileiros eventos na sociedade civil. A recepção do WikiLeaks no Brasil foi uns dos momentos mais vibrantes desta campanha. A campanha ganhava outro espírito e contorno.
Membros ilustres da Comissão Arns de Direitos Humanos se somaram e Lula falou sobre Assange na Assembléia da ONU em Nova York setembro de 2023, o primeiro líder a falar sobre o tema numa tribuna internacional.
Lula entregou a nosso pedido uma carta de Stella Assange ao Papa Francisco, que três dia depois a recebeu no Vaticano.
Em solo britânico, na ocasião da coroação do rei Charles III, e depois de conversar com o primeiro ministro Rishi Sunak, Lula foi o primeiro e único chefe de Estado a falar que a ação inglesa era ilegal e tinha que ser revertida. Lula continuo seu tour pela Europa falando sobre o caso Assange. Sempre acreditei que, para ele, a questão Assange era pessoal, Lula sabia o que era ser perseguido injustamente por estar a vanguarda de seu tempo e por desafiar o poder.
Celso Amorim me recebeu em Londres com sua equipe por mais de uma hora e nos escutou com toda atenção. Pouco a pouco quebrou-se o tabu de Assange com manifestações mais explicitas. O caso Assange voltava a ser tópico e a incomodar. A campanha na Austrália começou ganhou desde a eleição do primeiro-ministro Albanese e do grande esforço de advogados para poder manifestar a sua força e foi ganhando momentum, fazendo a fatura política pesar cada vez mas para os Estados Unidos. As campanhas europeia e americana nunca decolaram e continuavam residuais. Talvez Biden, com seu protagonismo na guerra na Ucrânia e no genocídio palestino, tomou a decisão pragmática de tentar se reconciliar com parte de seu eleitorado.
O processo legal no Reino Unido, que se alimentava de prazos excessivos, de decisões que nunca chegavam, de repente começou a se fazer estranhamente rápido. Na minha percepção, a possibilidade de um acordo estava sendo aventada, e as cortes britânicas decidiram aceitar a apelação para salvar sua reputação e se alinhar com as ordens americanas.
Assange está livre. Eu mesma duvidei desta possibilidade em muitos momentos.
Desta vitória, acho que o que se impõe é um sentimento de que muitas causas tidas como perdidas, até por nós mesmos, talvez não o sejam quando lutamos por um ideal. Hoje a luta pela liberdade da Palestina é tida como uma destas causas perdidas, mas quando observo a força e a coragem do povo palestino, tenho dúvidas. Toda fé é testada. As pessoas mais religiosas podem em algum momento se sentir abandonadas por um deus ou desacreditar na sua existência.
A luta política não é diferente e as grandes mudanças geralmente se manifestam primeiro nas suas formas mais invisíveis antes de se tornarem visíveis. Grandes líderes passaram por grandes provações. Mas a natureza humana ocidental é muito materialista e imediatista. Acho que muitas possíveis vitórias passam despercebidas por nós.
Da luta, posso falar do meu processo individual. Primeiro, a perda da inocência numa forma de idealismo puro quando se lida com grandes causas e ideias. Nem todos integram uma luta pelas mesmas razões, e os desafios internos entre os “iguais” podem ser muito mais duros e injustos que os externos.
Mas o grande legado desta luta para muitos de nós foi o paradigma inaugurado pelas próprias revelações de Assange e que se perpetuou na sua própria luta pela liberdade. A virulência dos impérios e como a sua máquina de propaganda e secretismo é um grande sistema de opressão. Quem são os terroristas? Os povos colonizados que lutam pela sua independência ou Hillary Clinton, que apoiou o estado Islâmico na Síria, Obama que expandiu a guerra dos drones, Bush e Blair quem devastaram o Iraque baseados em uma mentira, Biden que promove um genocídio?
Que prova temos de que o Estados Unidos levaram a democracia à Líbia, Síria, Iraque e Afeganistão, Yemen…? Não é possível ler o mundo com os mesmo olhos ou acreditar na grande imprensa depois das revelações do WikiLeaks com provas cabais da barbárie das nações que exercem sua supremacia de valores e ideias monolíticos e nos convencem de sua superioridade moral. Para nós, geradores do mundo multipolar, muitas questões sobre nossa soberania e auto imagem impõem uma reflexão completa.