Assassinato de Marielle representa o fechamento de horizontes que vivemos no Brasil. Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 16 de novembro de 2018 às 11:36

Publicado originalmente no perfil do autor no Facebook

POR LUIS FELIPE MIGUEL, professor de ciência política da UnB

No Brasil, nestes últimos tempos, temos acumulado símbolos. Símbolos demais, infelizmente: símbolos de nosso fracasso como projeto de nação, da barbárie em que nos lançamos, da violência que não é mais apenas exercida mas também exaltada.

O maior símbolo de todos é, penso eu, Marielle Franco.

Seu assassinato foi a representação brutal do fechamento de horizontes que vivemos no país. Uma mulher negra, da periferia, combatente por uma sociedade mais justa e solidária: não há lugar para gente assim no “novo Brasil” que se está construindo.

A comoção nacional que a morte de Marielle e de seu motorista Anderson Gomes causou não foi capaz de produzir justiça nem de incendiar a resistência. Lemos aqui a insensibilidade profunda dos donos do poder e também nossa própria incapacidade de organização efetiva.

Vilipendiar a memória de Marielle tornou-se um dos esportes favoritos da extrema-direita. Logo após o crime, as fabricações do MBL e de outros grupos da mesma laia deram a todos um vislumbre do que é a sórdida indústria das “fake news”. E a imagem dos dois brutamontes triunfantes quebrando a placa em homenagem à vereadora, durante a campanha do candidato vitorioso ao governo do Rio, ilustra com perfeição o Brasil em que estamos vivendo.

Quando Marielle foi morta, já começávamos a intuir. Com o passar das semanas, o descaso e a cumplicidade cada vez mais evidentes da autoridade policial reforçaram a impressão. E hoje não há mais margem para dúvida: aquele crime sintetizou com perfeição o momento que vivemos, o momento da travessia do golpe para o fascismo.

E, para completar, no final de outubro, sagrou-se vencedor das eleições presidenciais o único político de expressão nacional que não foi capaz de um gesto mínimo de humanidade: lamentar e condenar a execução de Marielle.

Mas símbolos são cheios de facetas, permitem múltiplas apropriações. Eles querem fazer do descaso e da desumanidade um emblema da própria vitória. Mais de oito meses se passaram e a esperança de que a justiça será feita se dissipa. Eles jogam isso na nossa cara, eles mostram que não ligam para a justiça, nem para as aparências, nem para nada. A morte de Marielle e a impunidade dos assassinos compõem seu símbolo.

Já a Marielle que nos serve de símbolo não é a mártir que tombou pela mão covarde de bandidos, mas a pessoa que manteve a espinha ereta, que cresceu sem jamais esquecer quem era, que mostrou que era possível lutar, resistir e construir coletivamente um futuro diferente, que se multiplica por inspirar com sua vida uma nova geração de ativistas. A Marielle que está “presente!”, como nos acostumamos a responder em tantas manifestações pelo Brasil afora.

Pensei tudo isso ao esbarrar, por acaso, num poema triste e poderoso da grande Renata Pallottini:

OS MORTOS

Os mortos estão deitados
mas os seus nomes tremulam sobre as campinas como flâmulas,
voam sobre as campinas a memória de suas faces
e a brancura de seus ossos perduráveis;

dizei, dizei dos mortos o que vos parecer,
eles estão deitados sob o limo com os olhos fechados,
com fibras e raízes onde estavam os olhos,
e com sumos e chuvas no lugar que era a boca;

Só a nossa lembrança os reúne e os congrega,
somos nós nossos mortos e estamos enterrados
e jazemos nós mesmos misturados às flores.
Dizei portanto as sentenças e os crimes,
já não podeis condenar-nos à morte.
Já pouco importa.

Porque estamos deitados,
vitoriosos e sós, imaculados, livres,
com as mãos cheias de terra e de silêncio.