
Abstract: 8/1: o sistema de justiça contra a “novilíngua de sequestradores”: os patriotas de fancaria rumo ao Know Nothing (saber nenhum, na distopia de MacIntire) ou: de quando poderemos dizer Nunca Mais?
O Supremo Tribunal não deveria julgar os golpistas? Alexandre de Moraes não poderia ser o relator?
Há muitas críticas no âmbito da dogmática jurídica processual acerca da seguinte pauta: Alexandre de Moraes, por ser vítima, não poderia ser juiz dos atos de 8 de janeiro. Muitas das críticas chegam a comparar o julgamento dos atos de 8 de janeiro aos processos da lava jato. Pauta complexa, reconheço. Temos escrito muito sobre isso (Marco Aurélio de Carvalho, Marcelo Cattoni, Kakay, Mauro Menezes e eu — entre outros).
Um dos argumentos contra o STF é o de que Moraes foi vítima dos atos e até mesmo com ameaças a sua vida, e, por isso, como consequência e por extensão, o próprio Supremo Tribunal não deveria julgar esses atos. Aqui os argumentos se dividem: de um lado, os críticos hard, sustentam que o STF como um todo não poderia julgar; de outro, os menos hard apenas sustentam a exclusão de Moraes. No conjunto das críticas ao Supremo Tribunal, uma delas diz que o STF, assim agindo e julgando, corrói a democracia.
Como sabemos — e os atos de 8 de Janeiro já possuem mais de 500 réus condenados (portanto, a imprensa já pode parar de falar “suposta tentativa de golpe”) a altas penas — o STF teve papel relevante na preservação da democracia, mormente se pensarmos no TSE, presidido então pelo ministro Alexandre.
Dizer, hoje, que o STF, por ser vítima, ou que Moraes, por ser uma das vítimas, não podem julgar a tentativa de golpe de Estado é fazer uma espécie de venire contra factum proprium às avessas contra o Tribunal, isto é, o fato de o STF contribuir para a derrota dos insurrectos do golpe agora passa a ser usado contra ele, pelo exato motivo de que terá que julgar os golpistas. E isso ele não poderia fazer, por ser suspeito.
Trata-se de raciocínio circular. Um argumento “capicua” (cabeça e cola em catalão). O STF, porque foi vítima, estaria impedido de julgar. Logo, para escapar de um juiz ou tribunal bastará atacá-lo. Imaginemos um sistema de justiça em um país em que uma tentativa de golpe de Estado fracassou e seus protagonistas, militares e civis, exatamente por terem tentado um golpe contra os poderes, sendo um deles o judiciário, agora estariam livres de serem julgados pelo órgão de cúpula do Judiciário, pela singela razão de que o atentado foi contra ele (também). Isto é, os réus poderiam escolher seus julgadores? Se verdadeira a tese, então, para isso, basta cometer crimes contra os seus juízes.
Sendo mais simples: Bolsonaro e membros de seu governo ameaçaram o Supremo, as instituições, a democracia e, como forma de chegar à ruptura institucional ameaçaram o ministro Alexandre, até mesmo com plano de matá-lo. Mas não só a ele. Por isso, o Ministro tem que se dar por suspeito, dizem.
Vejamos: declarado suspeito Moraes, redistribui-se o processo para o ministro Dino. Então os réus passam a ameaçar o ministro Dino, e assim sucessivamente até não haver mais quórum. E o processo seria julgado por quem? Pela Corte de Haia? Ou pelo juiz de primeira instância do Distrito Federal? E a competência do Supremo Tribunal Federal?

Ademais, a vingar a tese, ninguém julgaria membros do PCC, bastando que os advogados ou os quadrilheiros passassem a ameaçar os juízes ou com eles litigar. Julgamentos por júri já não seriam possíveis – bastando imaginar a facilidade com que se ameaça jurado e até o juiz da causa.
De todo modo, essa questão jurídica de suspeição já foi examinada pela jurisprudência brasileira. Exatamente o próprio STF já disse que réu não escolhe seu juiz. Disse já de há muito. Seria a negação da justiça. Seria o fracasso do sistema judicial. Seria algo como o rabo abanar o cachorro (wag the dog, na expressão em inglês).
STF, Judiciário, instituições: todos são vítimas da tentativa de golpe – isso, porém, não transforma o sistema em uma aporia
No caso dos atos de 8 de Janeiro a situação se agrava. Os atos querem dizer “houve tentativa de derrubar o governo eleito”. Com violência. Não se trata de um furto ou de um assalto. Direito não nasce de laboratório. Direito nasce da política, da economia e da moral. Não é asséptico. Ademais, desnecessário dizer que os ataques foram (também) à instituição Supremo Tribunal. Contingencialmente alguns ministros foram nominados, exatamente porque estavam na linha de frente exercendo suas atribuições e competências. Poderia ser qualquer ministro.
O direito não é algo simplesmente produto de imputação, sem raízes políticas (algo como autorictas non veritas facit legis). Os crimes contra a democracia não caíram do céu. Insisto: não são iguais ou semelhantes a um arrastão em supermercado.
O que é isto — o Direito? O que é isto — o Estado Democrático de Direito? Já não basta uma parte da comunidade jurídica negar, de forma criterialista, que os atos preparatórios, planejamentos etc., não configurariam tentativa, buscando demonstrar, com malabarismos hermenêuticos, que “não existiria tentativa de tentativa”, como se o ato de tentar derrubar um governo já não configuraria a própria consumação?
Parece que a última coisa a ser feita é entender que o nosso sistema de justiça, exatamente por ter sido vítima de uma tentativa de golpe, no interior do qual o STF faz parte, agora estaria impedido de julgar os algozes. Bem, levado o raciocínio às últimas consequências, se o STF não pode julgar os réus, nenhum juiz da República pode fazê-lo. E então se criaria uma aporia. Afinal, na tentativa de golpe a vítima também é o Poder Judiciário como um todo. E o Ministério Público. Que, aliás, segundo a Constituição é o guardião do Estado Democrático de Direito. Vejam o tamanho do imbróglio.
Os dois corpos dos ministros do Supremo?
De todo modo, neste país muitos (e muitos) acham que juiz decide como quer (nos acostumamos com esse imaginário solipsista) e veem na figura de um ministro do STF um CPF, não um juiz da Suprema Corte. Não entendem o papel do judiciário, da democracia. O ponto central é de natureza institucional. Atacar ministros não é simplesmente “atacar ministros”. Por isso talvez “tentar um golpe de Estado não é apenas fazer uma balbúrdia na praça dos três poderes”. Essa é a questão que parece ser negada – até mesmo por setores do Direito.
Para fechar o raciocínio e confirmar o argumento de que o direito é produto de um conjunto de coisas (moral, política etc.) e, portanto, não é produto dos deuses ou de laboratório que o faz com luvas esterilizadas, basta ver a extensão do julgamento do 8 de Janeiro para os EUA, que, agora, ameaça — explicitamente — a soberania do Brasil com sobretaxa de produtos, tudo conjuminado com ameaças feitas por um deputado federal que atua conspiratoriamente fora do Brasil e por um senador, seu irmão, que, aqui de dentro, ameaça com o uso da força contra a Suprema Corte (entrevista na Folha de S.Paulo), ambos bradando, à moda típica de sequestradores: ou “resolvem” o problema do 8 de Janeiro ou o Brasil será arrasado por taxas e sobretaxas.
Parece difícil alguém vir com argumentos paleojuspositivistas (textualistas hardcore) do tipo “o Poder Judiciário” não pode ser vítima e juiz. Parece simples demais esse raciocínio, mormente se examinado no conjunto da obra “tentativa de golpe de Estado” — agora fortemente tensionado pela presença e ingerência externa, colocando em jogo a própria soberania de um país com mais de 200 milhões de habitantes. Não parece, mesmo, que houve apenas um simples crime tipo “arrastão em um supermercado”, pois não?
O passo importante da PGR rumo a um futuro sem golpes e golpismos: livremo-nos dessa ‘inhaca’
Sem se deixar impressionar com a novilíngua de sequestradores, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, acostou ao processo, no dia 15 último, suas alegações finais que fazem jus aos mesmos elogios já postos à denúncia, com densidade de obra jus literária, com início, meio e fim. Argumentos bem encadeados, mostrando provas, diálogos, prints, reuniões e contradições dos e entre os envolvidos na trama golpista que visava a derrubar o presidente eleito e perpetuar Bolsonaro.
Oxalá o Brasil possa se livrar dos fantasmas dos 14 golpes (tentados e consumados) pelos quais já passamos, e dar um salto em direção ao futuro, livrando-se dessa inhaca de patriotas de fancaria, que, para salvar o seu líder, renunciam aos mínimos e comezinhos deveres de cidadãos. Enrolados na bandeira verde e amarela, conspurcam o hino que tanto cantaram — até mesmo para um pneu ou para discos voadores.