Até para bisneto de Henry Ford excesso de carro é um problema

Atualizado em 28 de abril de 2013 às 19:35

Os dilemas do ambientalista que comanda uma das maiores montadoras do mundo.

Um ambientalista improvável: Bill Ford
Um ambientalista improvável: Bill Ford

O texto abaixo foi publicado, originalmente, no site Planeta Sustentável. A autora, Natália Garcia, é jornalista especializada em planejamento urbano e tem como principal ferramenta de trabalho uma bicicleta dobrável, que usa para explorar as cidades. Criadora do projeto Cidades para Pessoas, ela percorreu 12 cidades pelo mundo (Copenhague, Amsterdam, Londres, Paris, Estrasburgo, Friburgo, Lyon, São Francisco, Portland, Cidade do México, Nova Iorque e Barcelona) em busca de boas ideias e boas práticas de planejamento urbano que pudessem inspirar cidades brasileiras.

Bill Ford tem a paixão pelos carros impressa no DNA. Seu bisavô por parte de pai era Henry Ford, criador da Ford Motor Company.

Por parte de mãe, é bisneto de Harvey Firestone, criador da empresa de pneus Firestone. Sua adoração por automóveis começou cedo. Aos 12 anos, Bill saia escondido de casa e dirigia os carros de seu pai, alimentando o sonho de ser piloto de testes.

Ao lado da paixão pelos carros, Bill se define também como um ambientalista. “Sempre gostei de ir ao campo, andar por trilhas em florestas e pescar em rios”, conta ele, nessa palestra que ministrou no TED. “Mas me chocava ver aqueles rios cada ano mais poluídos.”

De forma paralela à sua formação universitária, leu clássicos do ambientalismo e conversava com uma porção de especialistas e estudiosos do assunto.

Bill não enxergou a contradição entre suas duas paixões até entrar na faculdade. “Meus professores diziam que a Ford Motor Company era tudo de pior que existia no país, que só estavam mais interessados em lucro do que no progresso e enchiam o céu de fumaça”, conta.

Quando se formou, Bill voltou a Detroit e começou a trabalhar na Ford com a intenção – ingênua, hoje ele reconhece – de mudar as coisas por lá. No final da década de 70 ele soava como uma piada entre os executivos da empresa. Um deles o aconselhou a evitar conversar com ambientalistas “assumidos ou suspeitos”. “Aí descobri que os meus professores da faculdade não estavam errados”,  diz Bill.

Ele passou 30 anos fazendo carreira na Ford e hoje é presidente executivo da empresa. Finalmente Bill pode colocar em prática suas ideias ambientalistas para produzir carros menos poluentes.

Hoje, segundo ele, a Ford concentra esforços para aumentar o rendimento dos combustíveis e diminuir ao máximo a emissão de CO2. “Acredito que com muito esforço e trabalho conseguiremos eliminá-la”, diz. “Mas um monte de carros não poluentes, ainda assim, são um monte de carros”, pondera, levantando um outro problema tão complicado, segundo ele, quanto o ambiental: os congestionamentos.

“Passei minha carreira tentando entender como vender mais carros, mas hoje me pergunto: e se tudo o que fizermos for SÓ vender mais carros? E se o número de veículos nas ruas dobrar?”, diz Bill.

Sua proposição não está tão longe assim de acontecer. Em 2009, a população urbana se igualou à rural no mundo e, desde então, tem havido mais e mais gente nas cidades em contraposição ao esvaziamento dos campos. Há uma projeção de que em 2050, 75% das pessoas no mundo viverão em cidades.

Bill disse em sua palestra no Ted como esses dados devem reverberar em termos de carros. Hoje há no mundo cerca de 800 milhões de veículos. Em 2050, com essa tendência de urbanização em massa do mundo, estima-se que haverá entre 2 e 4 bilhões de carros.

O apocalipse motorizado já está acontecendo aos poucos. Em 2010, houve um congestionamento em uma rodovia chinesa que demorou 11 DIAS para se desfazer. Há  um verbete na wikipedia sobre esse evento.

Em São Paulo, os motoristas passam cerca de 3 horas por dia dentro de seus carros. Isso significa 45 dias por ano dentro de um automóvel. O excesso de carros na capital paulistana é também um problema de saúde. Segundo o médico e pesquisador Paulo Saldiva, 80% dos leitos dos hospitais do Sistema Único de Saúde estão ocupados por vítimas dos carros – com problemas cardiovasculares, respiratórios, auditivos ou vítimas de acidentes.

“A resposta para esse problema não é ‘mais do mesmo’”, propõe Bill. “Meu bisavô, Henry Ford, dizia que, se tivesse perguntado ao povo o que queriam para melhorar sua mobilidade, teria ouvido como resposta ‘cavalos mais velozes’”,  diz ele. Em vez disso, Henry criou o modelo Ford T, com o emblema de prover mobilidade, liberdade e progresso ao país. Hoje sabemos que essa liberdade prometida por Henry naufragou.

O modelo de mobilidade que aposta no carro como principal veículo está falido,  e até Bill Ford reconhece. Segundo ele, o trânsito restringe a liberdade de locomoção, o que vai impedir o crescimento econômico e atrapalhar funções vitais às cidades, como o abastecimento de comida.

Se essa ilusória liberdade do carro como meio de transporte urbano não for substituída por um novo paradigma de mobilidade, podemos estar cavando nossa própria cova.

“Precisamos de um novo salto de pensamento”, diz Bill.  Para ele, a resposta para a questão da mobilidade está em uma rede multimodal de transportes inteligentes e intercomunicados.

Seu discurso ainda parece um pouco descolado de suas ações. Ele ainda trabalha em uma empresa que depende do lucro da venda dos carros para fechar a conta. Por menos poluentes que sejam esses automóveis e por mais consciente ele se mostre em seu discurso de que os carros não resolvem a mobilidade de uma cidade, ele ainda está, a rigor, contribuindo com mais trânsito.

Ainda assim, um discurso como esse feito pelo presidente da emblemática Ford pode ser um começo da mudança de paradigma da mobilidade