Autonomia inconstitucional das PMs ameaça a democracia. Por Luiz Eduardo Soares

Atualizado em 2 de agosto de 2022 às 21:43
Polícia Militar – Foto: Sargento Wander PMDF/Divulgação

 

Luiz Eduardo Soares é um antropólogo, cientista político e escritor brasileiro e é considerado como um dos mais importantes especialistas em segurança pública do Brasil. Em seu Facebook, nesta terça-feira (2) ele comentou sobre o projeto que pretende conferir maior autonomia às Polícias Militares. Leia:

Congresso avalia reduzir poder de governadores sobre PM e polícia civil Em 11 de janeiro de 2021, a proposta circulou e eu reagi com o seguinte texto, que republico hoje, 2 de agosto de 2022, ante a retomada da ameaça.
A proposta é um insulto à democracia, uma ameaça da maior gravidade ao que nos resta do Estado democrático de direito.
A transição política, no Brasil, em função de sua natureza negociada com os representantes do antigo regime, permaneceu incompleta, por várias razões, entre as quais porque os militares egressos da ditadura lograram inserir o artigo 144 na Constituição, por meio do qual nos tornaram herdeiros do modelo policial forjado na ditadura.
Esse fato dramático produziu um enclave institucional: em plena democracia, as polícias preservaram práticas, crenças e valores racistas, classistas, refratários à democracia, ao poder civil, à autoridade republicana.
Esse fenômeno -a resistência ao poder político, civil e republicano- só foi possível por conta da cumplicidade de setores dominantes do MP e do Judiciário, e da pusilanimidade de lideranças políticas. Por isso, a luta dos democratas, na segurança pública, sempre foi pela mudança do artigo 144, pela mudança do modelo policial que herdamos da ditadura, visando acabar com a resistência das polícias, civis e militares, à autoridade civil política e republicana.
Por isso, sempre denunciamos o fato de que os governadores -com variações de grau no tempo e no espaço- não comandam, efetivamente, as polícias. Eles não o admitem para não parecer fracos e para não romper alianças com as polícias -das quais, na prática, eles são reféns.
Aliar-se a um poder insubordinado (a insubordinação se constata pela autonomização verificada na ponta, nas ações nas favelas e periferias, mostrando que até mesmo hierarquia e disciplina não existem, de fato) significa rendição política ilegal. A proposta que está sendo gestada pela bancada da bala, ligada ao governo federal, é a pá de cal na luta de três décadas dos movimentos de direitos humanos pelo controle legalista da atividade policial, é o sepultamento de qualquer hipótese de reforma do modelo policial (único no mundo e sabidamente fracassado), representa fechar o cofre e jogar a chave ao mar.
Esse projeto significa a blindagem definitiva e irreversível das polícias e a declaração de sua independência, o que corresponderia, sejamos francos, ao fim das veleidades democráticas no Brasil. Populações vulneráveis já são reféns, governadores já são reféns, a resistência pela democracia sofreria seu revés mais grave.