Bailes funk e a cracolândia são tratados da mesma forma, por isso as tragédias. Por Donato

Atualizado em 6 de dezembro de 2019 às 20:59

O tratamento dispensado aos bailes funk é exatamente o mesmo dado à cracolândia, e vice-versa.

Quem atua nesses locais é a Polícia Militar – que é responsabilidade do governador do Estado – e seus métodos são conhecidos: truculência, abuso, tiro, porrada e bomba. Não sem algum grau de sadismo e insubordinação.

Diante do cenário instalado, as “autoridades”, o poder público e a polícia ignoram serem pessoas que ali estão e resolvem limpar a área como se tratassem com dejetos em um aterro.

A impressão que temos é que, se possível fosse, eles prefeririam passar por esses locais com retroescavadeiras e não com viaturas.

Quando na prefeitura, João Doria até ensaiou algo assim. Mandou tratores derrubarem casas com pessoas dentro.

A classe média quer isso. Os ricos se prontificariam a fornecer equipamentos.

As duas questões, cracolândia e bailes funk, são complexas por si mesmas, mas tornam-se muito mais graves quando o primeiro e único agente que decide intervir é aquele que deveria ser o último e mesmo assim somente em casos excepcionais: a polícia.

Nenhum dos dois casos é assunto de polícia, à priori. Um é problema de saúde, o outro é um problema social. Aliás, o funk é um problema? É curioso, pois toca em muitas festas infantis por aí. Mas vamos em frente.

Se o pano de fundo para esse domínio da polícia em questões que nada lhe dizem respeito é a tal guerra às drogas, o método deveria ser uniforme em todos os locais em que drogas e música alta rolam soltas.

Qualquer criança sabe que não é assim que funciona no Brasil. Nenhuma rave ou balada da Vila Madalena é invadida pela turma da farda. Portanto o ponto não é esse.

É preciso que nove jovens morram para que o assunto se torne pauta de jornais e haja alguma discussão entre população e poder público.

Sem tocar no ponto central (nosso apartheid), em pouco tempo tudo voltará ao normal.

Exagero? Vamos lá.

Na mesma noite da carnificina em Paraisópolis, uma outra pessoa havia morrido na comunidade de Heliópolis. Se “só” essa pessoa tivesse morrido, a ocorrência estava na coluna do “normal”. Não haveria repercussão, o grande público não saberia.

O que se passa na periferia parece ocorrer num mundo à parte do qual a outra face da sociedade não quer tomar conhecimento. Essa outra parcela privilegiada tem a postura Bolsonaro/Doria/Witzel: “Alguns inocentes vão morrer, mas tudo bem”.

Os vários vídeos divulgados ao longo dessa semana, captados em outros locais e outras datas, confirmam que o que ocorreu no último sábado em Paraisópolis não foi algo raro. Aquelas cenas provam que é corriqueiro e que a violência é o único método adotado.

Através deles vimos mãe e filho serem agredidos com um skate por um policial, vimos agressões aleatórias em quem passasse, mesmo que um deficiente físico. Vimos guardas chutando e derrubando motos estacionadas. O que isso tem a ver com música alta?

Um pequeno ruído ocorreu quando três pessoas morreram no baile Vermelhão em Guarulhos, ano passado. Mesma cena: baile funk, aglomeração em local exíguo e a PM chega tocando o terror. Tumulto, correria, pisoteamento. Houve alguma repercussão.

Mas três mortos não foram o suficiente para causar comoção generalizada. Naquela ocasião o discurso moralizador venceu. “Se estivessem em casa estudando, isso não aconteceria”.

Nove parece ter sido demais. Será?

Chegar atirando balas de borracha e lançando bombas em locais de aglomeração já é de uma irresponsabilidade inenarrável. Em espaço sem opção para dispersão é um crime.

Como os bailes acontecem em toda a cidade em todos os finais de semana – e como a polícia age dessa forma regularmente – o número de pessoas feridas é gigante.

Segundo dados da própria SSP, só este ano foram realizadas 7.597 operações Pancadão. Dá para imaginar a quantidade de pessoas agredidas, humilhadas, prejudicadas? Muitos jovens perderam a visão atingidos por tiro ou estilhaço. Mas não se tem esse número exato, pois como vimos no último final de semana, policiais costumam cancelar o socorro do Samu.

Não por acaso a corregedoria da Polícia Militar está encontrando dificuldade para ouvir testemunhas. Ninguém quer se arriscar. São moradores e sabem que a polícia transforma a comunidade num inferno toda vez que algo sério acontece.

Imagine então se um policial for o novo ouvidor e se o excludente de ilicitude for aprovado. Esses planos de Doria e Moro estão caminhando. Aos trancos, mas estão.

Mesmo com décadas demonstrando a ineficácia, a incoerência e a desumanidade, o método da força bruta é mantido. Até quando?