Esta reportagem fez parte do nosso projeto de crowdfunding sobre a Lava Jato: das origens à perseguição a Lula
A primeira reportagem desta série contou como o juiz Sérgio Moro emparedou o ministro Teori Zavascki, em maio de 2014, e impediu que uma antiga investigação sobre lavagem de dinheiro fosse para o Supremo Tribunal Federal (STF).
De lá o processo seguiria para os fóruns adequados — os chamados juízos naturais –, definidos por critérios previstos em lei. O primeiro deles é o local onde ocorreram os crimes. No caso de acusados por foro por prerrogativa de função – deputado, por exemplo –, a investigação ficaria com o próprio Supremo Tribunal Federal.
Enfim, a Lava Jato seguiria seu curso natural, atendendo ao princípio da impessoalidade da Justiça – não é à toa que seu símbolo é uma mulher com os olhos vendados. Vamos tratar agora de outros fatos, forjados para manter em Curitiba a operação que, enquanto se manteve exclusivamente nas mãos de Sérgio Moro, atingiu apenas o PT e seus aliados.
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O doleiro Alberto Youssef tinha negócios e residência em Londrina, no Paraná, quando foi preso na operação Banestado – a lavanderia funcionou principalmente nos anos do governo Fernando Henrique Cardoso. Fez acordo de colaboração – quando não havia ainda a lei da delação premiada – e, em 2004, deixou a cadeia, com o compromisso de que não mais praticaria crime.
Só que a Polícia Federal continuou a monitorá-lo. Não só ele, mas também de pessoas ligadas ao seu principal cliente, o deputado José Janene, do PP. Por alguma razão ainda não clara no inquérito que deu origem à Lava-Jato, que é de 2006, interceptou ligação telefônica de um assessor de Janene, Roberto Brasiliano, e de seu advogado, Adolfo Gois.
Foi aí que o delegado Igor Romário de Paula, da Polícia Federal, descobriu que Beto, uma das formas como Janene e seus amigos chamavam Youssef – a outra era Primo –, continuava no crime. O advogado conta para Brasiliano:
— Ontem mesmo tava o Beto lá, e começaram a falar o nome das empresas que depositaram na conta da outra lá, sabe? – diz o advogado, segundo a transcrição que foi para o juiz Sérgio Moro, como fundamentação para abertura de inquérito.
Na conversa, já se sabe que o cliente do Beto é Janene, então deputado federal, e isso obrigaria o juiz a remeter o processo para o Supremo Tribunal Federal.
Também se sabe que a investigação está relacionada a um desdobramento do inquérito do mensalão, em Brasília, para investigar a lavagem de dinheiro de Marcos Valério.
Mas Sérgio Moro, num despacho de próprio punho, com sua letra miúda, manda abrir inquérito e se considera seu juiz natural, por dependência ao processo em que Youssef tinha obtido benefícios como colaborador.
Sérgio Moro considerou que Youssef, por ter feito o acordo de colaboração com ele em outro caso, o do Banestado, dois anos antes, estivesse vinculado a ele. Por essa lógica, seria um vínculo eterno e faria de Moro dono de Youssef.
Também chama a atenção o fato de Moro fazer o seu despacho à mão, o que indica que ele tinha pressa em abrir o inquérito.
E parece que tinha mesmo.
No dia seguinte à sua decisão, que abriu o inquérito que dará origem, oito anos depois, à Lava Jato, o Tribunal Regional Federal determinou que metade dos inquéritos até então tramitando sob a jurisdição de Moro deveria ser encaminhada a outra vara.
No seu despacho manuscrito, Moro vinculou este inquérito ao processo da colaboração de Youssef e, assim, criou uma dependência do inquérito à sua jurisdição.
Outros inquéritos poderiam seguir para um colega de Curitiba. Mas este não.
Youssef era dele.
“Uma das mais salientes garantias do cidadão no atual Estado Democrático de Direito apoia-se no princípio do juiz natural”, diz o criminalista Luiz Flávio Gomes, em um estudo sobre a impessoalidade da Justiça.
Mais uma vez, esta regra estava sendo desrespeitada na Vara de Moro.
Mas viria mais.
Em 2014, como desdobramento do inquérito que Moro segurou para si, o Ministério Público Federal presta informação falsa em uma representação a Moro.
Dá como endereço de Youssef uma residência em Londrina, mas, desde 2009, a Polícia Federal, o próprio Ministério Público e juiz Sérgio Moro, sabiam que o doleiro já morava e tinha escritório em São Paulo.
Por que o endereço em Londrina?
A resposta óbvia é que o Ministério Público tentava forçar o vínculo com Sérgio Moro.
No caso da Lava Jato, os fatos mostram que a maior parte das ações descritas como crime ocorreu muito longe do Estado do Paraná, mas, com a informação falsa de que Youssef residia em Londrina, se criava a ilusão de que o local para investigar e julgar os atos da Lava Jato era Curitiba.
Por que tanto interesse em segurar uma investigação?
É uma resposta que pode esclarecer muita coisa.
Mas o que está claro é que a Lava Jato só atingiu alvos fora do PT – Michel Temer e PSDB principalmente –, depois que Moro perdeu o controle sobre ela.
O que teria acontecido se, lá atrás, a Justiça tivesse agido com impessoalidade?