Barroso: o descanso do guerreiro de toga. Por Edward Magro

Atualizado em 10 de outubro de 2025 às 10:16
O ministro Luís Roberto Barroso – Foto: Reprodução

Talvez nem todos se deem conta, mas o Brasil experimenta, hoje, um raro alívio, daqueles que chegam quando o ar se torna, enfim, respirável e a claridade da manhã devolve alguma gentileza ao mundo. São, por assim dizer, as águas de março encerrando o verão.

A boa nova é o anúncio da aposentadoria antecipada de Luís Roberto Barroso, feita entre lágrimas, afetações, soluços discretos e autoelogios nada discretos, vertidos em metáforas nem sempre contidas. É um dia a ser comemorado.

O país, cansado de eloquências togadas, iluminismos de auditório e de suas digressões poético-musicais nas redes sociais, com recomendações literárias e musicais enviadas via Twitter, com a devoção habitual das sextas-feiras ao fim do expediente, acordou, enfim, um pouco melhor. Pode ser entusiasmo da minha parte, mas o Brasil parece, sim, respirar com mais leveza.

A cena foi singela. O ministro, comovido, falando de si para si mesmo, declarou que nada o afastara de sua “missão perante o país e sua consciência” e que se retirava com o “dever cumprido”. O tom era o de quem se despede de um altar, não de um tribunal. Sua fala lembrava, em tudo, a de Bento XVI ao renunciar ao papado.

A plateia ouviu, com paciência e polidez, o discurso de um homem persuadido de que a História o contempla com gratidão. Não o faz, mas o equívoco é compreensível. Barroso sempre acreditou que o espelho lhe devolvia a imagem de um herói civilizatório.

Segundo a sempre bem-informada, embora raramente confiável, CNN Brasil, as sanções americanas teriam pesado na decisão do ministro. Ele, que é colaborador da Harvard Kennedy School e apreciava passar as férias em reclusão intelectual nos Estados Unidos, viu-se privado do conforto habitual: livros, chá e um saudável isolamento moral de seu próprio país. Ser forçado a conviver com o Brasil real, sem vistos especiais, é um tipo de penitência que poucos juristas suportariam com serenidade.

É natural, portanto, que tenha decidido, como confessou, dedicar-se agora à “espiritualidade, literatura e poesia”. O espírito, fatigado de tantos atos monocráticos e missões salvadoras, precisa repouso. A toga, afinal, não é túnica franciscana, e o Supremo, por mais que parecesse, nunca foi um mosteiro. Pelo menos, não mais.

Barroso cansou-se do franciscanismo stfiano e decidiu alçar voos espirituais, tomando por asas a literatura e a poesia. Eu, na minha ignorância, sempre supus que a poesia fosse apenas um gênero da literatura; felizmente, Barroso me esclareceu.

Embora versado no embromation vernacular, Luís Roberto Barroso jamais foi um personagem menor nos desatinos recentes da História do Brasil. Devotado ao próprio brilho, amante fervoroso da própria retórica, foi um dos grandes artesãos da estrada que conduziu o país ao abismo em que quase se perdeu. Estreou em cena com fervor moralista no julgamento da farsa do mensalão, cortejando a glória do populismo judicial e sonhando, talvez, com a popularidade ruidosa de Joaquim Barbosa, aquele que a Veja, em mais uma de suas capas delirantes, descreveu como “o menino pobre que mudou o Brasil”. Depois, percorreu os caminhos tortuosos da Lava Jato, aquele teatro de virtudes onde se abrigavam todas as piores vicissitudes do espírito humano. Não satisfeito, empenhou-se em afastar Lula da disputa de 2018, contribuindo com zelo quase devocional para a catástrofe democrática que se seguiu.

O presidente Lula – Foto: Reprodução

E, quando a ambição necessitou de novos horizontes, convidou o Exército a participar do espetáculo eleitoral, como se o país precisasse de soldados para compreender o valor do voto. Um gesto de pura elegância estratégica, a mesma que, anos depois, o levou a pronunciar, em Manhattan, e não em São Gonçalo, a expressão “perdeu, mané”, que dificilmente figurará em antologias de oratória forense. Foi um toque cosmopolita, digno de um iluminista banhado pela candura amarelada da Quinta Avenida à noite.

Ocorre que o destino, de humor notoriamente instável, decidiu brincar com certa crueldade. As sementes que Barroso lançou com tanto zelo e altivez germinaram em terrenos imprevistos. Não apenas em Manhattan, mas também em São Gonçalo, Barretos, Brusque, Curitiba e tantos outros lugares que ele jamais frequentou, nem frequentaria. Nesses rincões onde, em tese, deveria ser celebrado como herói, Barroso tornou-se persona non grata.

Os ovos das serpentes que ele, com cuidado paternal, ajudou a proteger e nutrir, enfim eclodiram, e as crias não o reconheceram como pai. Passaram a cercá-lo, a persegui-lo, a atacá-lo nos mesmos espaços onde antes o aplaudiam. De repente, o jurista que se via como antídoto da barbárie descobriu que, por descuido ou vaidade, fora, na verdade, o seu jardineiro.

Daí a pressa em partir. É raro que alguém se aposente não por esgotamento físico, mas, creio eu, por exaustão moral. E, nesse sentido, sua despedida é um gesto de autoconservação louvável. Afinal, quando a criatura começa a rondar o criador, o mais prudente é apagar a luz e sair discretamente pela porta lateral. Ao fazê-lo, extingue-se o foco, renova-se o visto da Disneylândia, dissipa-se a Magnitsky e a vida, aliviada, retoma seu curso natural.

O Brasil, gentilmente, agradece que a vida pessoal de Barroso volte ao seu ritmo, enquanto sua vida jurídica, felizmente, descarrila. Não pelo que ele fez, mas pelo que, doravante, deixará de fazer. Cada ausência tem seu valor, e há silêncios que prestam melhor serviço à República do que mil votos de relator.

Barroso prometeu mais poesia. Que assim seja. O país também deseja algum verso depois de tantos parágrafos de prosa autoritária. Que encontre, entre seus poetas prediletos, o sossego que a toga lhe negou. E que, em sua leitura tardia da vida, perceba, com o mesmo entusiasmo que dedicou a Harvard, que há grandeza também no gesto de calar. Que o silêncio, enfim, o redima do excesso de voz.

O Brasil merece esse descanso.