Bem vindos ao Brasil colonial: a mula, a mulata e a Sheron Menezes

Atualizado em 24 de outubro de 2014 às 16:31

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“Nossos irmãos estão desnorteados

Entre o prazer e o dinheiro desorientados

Mulheres assumem a sua exploração

Usando o termo mulata como profissão

É mal…(Chegou o Carnaval, Chegou o Carnaval)

Modelos brancas no destaque

As negras onde estão?

Desfilam no chão em segundo plano

Pouco original mais comercial a cada ano

O carnaval era a festa do povo

Era … mas alguns negros se venderam de novo

Brancos em cima negros em baixo

Ainda é normal, natural, 400 anos depois (…)

Bem vindos ao Brasil colonial e tal…”

 

Voz Ativa, Racionais Mc’s.

Alguns disseram: que bom, enfim o negro está adentrando a televisão. Outros, não ingênuos e mais acostumados com as artimanhas da rede Globo, não acharam algo tão bom assim. Porque, infelizmente, a mulher negra só aparece na televisão em dois momentos: ou é escrava/doméstica, ou é mulata no carnaval e nas duas visões ela está sendo colocada a serviço do homem branco. É bom que conheçam a raiz desse termo “mulata” e saibam que ele não é bom como muitos pensam.

O termo ‘mulato’ vem das palavras em espanhol e português para a mula, que baseiam-se no termo em latim mulus que significa a mesma coisa. A mula é o produto resultante do cruzamento do cavalo com burra, ou seja, passou a aplicar-se ao filho de homem branco e mulher negra. O termo mulata tem raiz baseada em um animal, igualmente como o “criolo”, termo que se usava pra designar os negros antigamente, que também era o nome de uma raça de cavalo.

Acompanhando recentemente o concurso para eleger a nova Globeleza (mulher que deve representar a rede Globo no carnaval como a famosa “mulata” ícone do carnaval), tive duas reações primárias: primeiro me surpreendi com o número grande de negras na televisão, porque é algo que não acontece sempre e,segundo, percebi a total sexualização dos seus corpos, que se acentuou com a foto divulgada no instagram da atriz negra Sheron Menezes, onde ela exibe as mulheres de costas, apenas com a bunda em destaque quase como um troféu, como se a mulher só fosse isso: um corpo pra ser usado.

O ‘criolo’ não é mais usado tão livremente, mas se adotou o ‘mulata’ como um termo bonito e nada pejorativo. Não é só um nome porque é carregado de história, uma história que demonstra que a mulher negra está ali a serviço dos indivíduos que só a aceitam se ela estiver limpando seu chão, carregando carga, ou rebolando no seu colo, pois esse é o jeito que um bom animal domesticado deve agir. A mulher negra é tratada constantemente como um animal e um souvenir que o turista vem buscar no carnaval: “Venham turistas, temos mulheres negras gostosas para oferecer a vocês! Também temos boas empregadas pra limpar as suas sujeiras!”

Sim, sabemos que 125 anos se passaram e a escravidão acabou, porém as suas práticas continuam bem vindas e são aplaudidas por muitos de nós na novela das nove e no programa do Faustão, “pouco original, mas comercial a cada ano”. No tempo da escravidão, as mulheres negras eram constantemente estupradas pelo senhor branco e carregavam o papel daquela que deveria servir sexualmente sem reclamar, nem pestanejar e ainda deveria fingir que gostava da situação, pois esse era o seu dever. Hoje nós, mulheres negras, continuamos atreladas àquela visão racista do passado que dizia que só servíamos para o sexo e nada mais.

O mais problemático é que usam essa imagem do negro na televisão tentando nos enganar como se nos aceitassem, que estão nos colocando na televisão por boa vontade, que a mulher que está nessa situação “escolheu isso deliberadamente”. Mas esquecem de informar que nos concursos de beleza como Garota Fantástica, Musa do Brasileirão, Musa do Caldeirão etc — concursos da mesma emissora, igualmente machistas e estúpidos, que representam a beleza padrão — não havia nenhuma mulher negra entre as concorrentes. Por que será? Simplesmente porque a mulher negra não representa a beleza padrão, ela representa o sexo, o selvagem, o folclórico.

Se não for isso ela é invisível, se acaso ela não trabalhe por esses padrões pré-estabelecidos pela mídia. Até no carnaval, que deixou de ser uma festa do povo, desde que eu me conheço por gente raramente vejo uma mulher negra como destaque de escola de samba, apenas mulheres brancasm — “famosas” que podem até, em sua maioria, nem saberem o que é carnaval, mas estão na avenida. Enquanto as negras que moram dentro da comunidade onde a escola trabalha seu show o ano inteiro, saem sem destaque, sem câmeras, sem atenção.

Todo ano quando o carnaval está pra chegar eu me preparo psicologicamente pra chuva de estereótipos e de hiperssexualização da mulher negra. Não me levem a mal, eu adoro o carnaval, mas nós como negros não podemos nos acomodar com esse tipo de representação, fazer como a “querida” Sheron Menezes e apoiar a exploração do corpo da mulher negra como se isso fosse algo normal. Temos que colocar o pé no chão, pois por mais que pareça, isso não é o Brasil Colônia e não somos mais escravos: é nossa vez de lutar contra o racismo de modo inteligente, não dando ibope para os racistas da Rede Globo, nem naturalizando o lugar do negro em lugar de inferioridade.

Zumbi, Dandara, Mandela e tantos outros lutaram para que o racismo não tenha voz em tempos consideravelmente mais pesados que esse. Então nesse momento é a nossa vez de dar as cartas e reverter o jogo. Como dizia o poema Oliveira Silveira: “Querem que a gente saiba que eles foram senhores e nós fomos escravos. Por isso te repito: eles foram senhores e nós fomos escravos. Eu disse fomos.” Não é a Globo, a Sheron, a novela, os turistas, ou o que seja, que vai nos dizer o contrário: não somos mais escravos, por isso, negros e negras, não aceitem essa colocação!

 

O texto acima foi publicado originalmente no site Blogueiras Negras.