Bento XVI, o papa que não era um ogro

Atualizado em 31 de dezembro de 2022 às 8:09
Papa emérito Bento XVI — Foto: Gregorio Borgia/ AP

Por Francisco Martínez Hoyos

O mapa que Jorge Luis Borges imaginou era tão grande como o território que representava. Quase, quase, algo semelhante acontece com Benedicto XVI: Una vida (Mensajero, 2020), a hercúlea biografia do jornalista Peter Seewald, que mais do que um relato sobre a vida de seu personagem, parece a própria vida. Seewald vinha cobrindo a atividade de Ratzinger, a quem entrevistou em diversas ocasiões, há mais de um quarto de século.

Agora, propõe um retrato pormenorizado de sua trajetória construída a partir da solidez documental e de uma clara empatia, com a admiração que, neste caso, não significa cegueira. No caminho, o leitor descobrirá que muitas das coisas que acreditava saber vão pelos ares com a força da informação verificada e o bom senso.

O primeiro mito questionado é o do pontífice reacionário. Campeão do obscurantismo um pensador convencido de que a fé e a razão não se opõem? Seus inimigos aceitam como verdade evidente sua hostilidade à renovação do Vaticano II, convencidos de estarem diante de um perigoso retrógrado. Ratzinger, na realidade, colocou o seu brilhantismo teológico a serviço do Concílio, que desde então não deixou de reivindicar como um momento decisivo na vida da Igreja.

A grande questão é discernir em que consistiu esta famosa atualização. Alguns a tomam como um ponto de partida, outras como um ponto de chegada. No resultado final, produto de uma combinação entre progressistas e conservadores, as mudanças tiveram um peso formidável, mas também a continuidade, expressa em milhares de referências ao magistério de Pio XII.

Portanto, não existe uma única linha conciliar. A de Ratzinger consistiu em se ater aos textos frente aos que relativizavam o escrito para ser fiéis ao espírito. Não está, portanto, do lado de tradicionalistas como dom Lefebvre, nem dos que defendiam uma revolução ao estilo dos teólogos libertacionistas.

Diz-se que o futuro Bento XVI viveu de uma forma traumática Maio de 1968. A rebeldia estudantil o teria impactado de forma suficiente para transformá-lo em um conservador obstinado. Segundo Seewald, esta teoria carece de fundamento. Existe apenas um Ratzinger, sempre em coerência consigo mesmo.

A teoria do suposto “trauma” procederia de Hans Küng, primeiro seu amigo, mais tarde seu rival. Nosso biógrafo não retrata o teólogo suíço com muita simpatia: traça-o como um homem vaidoso e egocêntrico, sempre disposto a semear cizânia, valendo-se de uma utilização muito hábil dos meios de comunicação.

Em certo sentido, João Paulo II e Ratzinger, seu prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé, formavam uma estranha parceria. Um, expansivo e carismático, movia-se como um peixe na água dos banhos de multidões. O outro, um “rato de biblioteca” retraído, preferia a tranquilidade dos livros. Por isso mesmo, ao chegar a certa idade, sonhava em se aposentar e dedicar seu tempo aos estudos. No entanto, o destino o colocaria como capitão na nave de São Pedro. Nesse momento crucial, deve ter sentido o mundo caindo sobre ele.

Nos anos seguintes, precisou assumir complicadas tarefas de gestão para as quais não estava bem preparado. Enquanto isso, enfrentou escândalos como o dos padres pedófilos ou os vazamentos do Vatileaks. A imprensa, ao mesmo tempo, não oferecia um retrato de sua pessoa, mas uma caricatura grotesca.

Seewald se mostra muito crítico a todo um grupo de repórteres que sacrificou a precisão informativa em prol do sensacionalismo fácil. Ao contrário do que muitos esperavam, a estatura de Bento XVI cresceu em meio a todas essas adversidades.

Aqueles que vivem como ele a paixão intelectual, sempre encontrarão uma forma de se retirar, na privacidade, para escrever. Agiu mal em dedicar tempo a sua cristologia, enquanto governava a Igreja? Para ele, a teologia constituía também uma forma de serviço. Estava convencido de que era necessário um esclarecimento doutrinal em um tempo de incerteza. O testemunho dos católicos, em sua avaliação, não deveria passar pela adaptação às ideias do mundo, mas pela lealdade a seu próprio legado.

Pode-se dizer, caso se prefira, que esta não é a posição mais adequada em pleno século XXI. De outro ponto de vista, ao contrário, não contemplamos um personagem obtuso, mas um homem corajoso, um homem que não se importa com os concursos de popularidade. Em vez de ceder aos ditados da moda, prefere viver segundo seus próprios princípios, ainda que isso signifique um gesto tão incomum como o de sua própria renúncia.

O assunto propagado pelos meios de comunicação progressistas apresenta o Papa atual, Francisco, como um progressista, quase um revolucionário, em nítido contraste com o seu antecessor. O bom frente ao mau? Um exame atento dos fatos evidencia que a sintonia entre os dois pontífices não é apenas pessoal, mas também ideológica.

Seewald proporciona dados expressivos que demonstram que ambos olham para o futuro sem perder de vista o passado. Concordam em pontos cruciais, como a condenação do que chamam de “ditadura do relativismo” ou a afirmação de que um crente deve confessar explicitamente a Jesus Cristo. De outro modo, a Igreja correria o perigo de ver sua autêntica missão desvirtuada para se tornar um organismo simplesmente assistencial, uma espécie de ONG.

Como toda obra de grande envergadura, o livro de Seewald não está livre de algum ponto discutível. Afirma, por exemplo, que Bento “foi o último Papa que conheceu em primeira mão o terror do mal no século XX”. Bergoglio, seu sucessor, não viveu sob o nazismo, mas, sim, na época da ditadura argentina.

Não obstante, para além de detalhes, o que importa é que estamos diante de uma grande interpretação de um pontificado crucial. Seewald também atinge de sobra o objetivo de um bom biógrafo: criar a ilusão de que conhecemos o protagonista. Nem sempre concordaremos com Ratzinger em todas as suas abordagens, mas não podemos deixar de reconhecer sua integridade, inteligência e grandeza.

Originalmente publicado em INTITUTO HUMANITAS UNISINOS

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