
No dia 22 de outubro deste ano, faltando então pouco mais de uma semana para o segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, a imprensa nacional informou que a “Justiça” havia determinado que o Facebook retirasse quaisquer restrições à página do deputado Eduardo Bolsonaro na rede social. A decisão proibia a exclusão de postagens que tivessem “relação com o mandato parlamentar”.
A ordem judicial fora dada dentro de um processo em que o deputado reclamava que tinha seu direito de expressão cerceado em suas contas no Facebook e no Instagram (as duas redes controladas pela mesma empresa). Já o Facebook alegava que apenas fazia valer as suas “regras de comunidade”, impedindo que fossem propagadas notícias falsas sobre o processo eleitoral e sobre a pandemia do novo coronavírus.
Nas reportagens, constaram trechos da decisão do juiz, mas nenhuma linha dos argumentos da defesa do Facebook. A parte da decisão que mais vezes foi replicada é a que segue (o destaque foi incluído pela reportagem do DCM):
Ademais, se nem o Estado pode punir alguém sem o contraditório e a ampla defesa, muito menos empresas, ainda que sejam “Big Techs”, podem fazê-lo.

Nada foi informado a respeito de Caramuru Afonso Francisco, o juiz de primeira instância que proferiu a decisão em favor do deputado. Na realidade, o magistrado paulista só teve a chance de julgar o caso depois de Eduardo Bolsonaro ter tentado sem sucesso por três vezes obter uma decisão judicial como a que Caramuru Francisco exarou. Foram três processos anteriores instaurados em Brasília, inexitosos para o parlamentar.
A lei processual brasileira impede que uma pessoa siga ingressando com ações judiciais iguais em diferentes comarcas pelo país, insistindo em levar a mesma causa a sucessivos julgamentos até eventualmente obter sucesso com algum magistrado, que por algum motivo venha lhe dar razão.
Os advogados do Facebook alertaram ao juiz Caramuru sobre tal conduta por parte do deputado federal, conforme revelou o DCM. Veja o trecho abaixo de peticionamento da rede social à Justiça paulista. As partes em destaque foram originalmente realçadas pelos advogados do Facebook.
EXTINÇÃO DESTA DEMANDA – LITIGÂNCIA QUE JÁ ENVOLVE AS PARTES
Como destacado às fls. 81-89, o Autor omitiu deste D. Juízo a existência, no E. TJDFT,de 3 (três) processos movidos contra o Facebook Brasil, tratando da mesma matéria discutida nestes autos. Também não houve qualquer justificativa acerca da mudança quanto à escolha do foro de ajuizamento pelo Autor – a qual provavelmente está relacionada à série de decisões desfavoráveis que o Autor vem enfrentando naquele Tribunal.

Quer dizer: depois de tentar e perder três vezes na Justiça do Distrito Federal, em julgamentos realizados por diferentes magistrados, Eduardo Bolsonaro e sua advogada, Karina Kufa, resolveram trazer sua demanda para a comarca de São Paulo, especificamente ao Foro Central Cível da Capital. A lide acabou por cair nas mãos do juiz da 18ª Vara Cível, Caramuru Afonso Francisco.
Por obra do destino ou de algum outro obreiro, fato é que a sorte de Eduardo mudou a partir do momento em que Caramuru passou a empunhar a espada da Justiça para julgar o processo.
De pronto ele ignorou a informação de que o caso já vinha sendo julgado em outra comarca. Dois dias após o ingresso do deputado com sua demanda, Caramuru já a atendia, em caráter de urgência e inaudita atera parte, quer dizer, sem sequer ouvir o Facebook antes de tomar a decisão, no dia 22 de outubro, nos moldes do que foi noticiado pela imprensa, invocando a liberdade de expressão e a impossibilidade jurídica das big techs punirem os cidadãos, como se a Justiça fossem.
Em sua decisão, o juiz Caramuru não entrou em maiores detalhes sobre as tais big techs. Se quisesse, teria muito mais a dizer sobre grandes empresas de tecnologia que atuam no mundo inteiro, como Apple, Amazon, Alphabet, Microsoft e Facebook, para citar somente as big five, ou as cinco maiores empresas de tecnologia do mundo.
Caramuru Afonso Francisco, juiz da 18ª Vara Cível do Forum Central da Comarca de São Paulo, é também Caramuru Afonso Francisco, pastor auxiliar e evangelizador da Igreja Evangélica Assembleia de Deus – Ministério do Belém – sede – São Paulo/SP. Abaixo, pode se ler o que ele prega a seus fiéis sobre o Facebook e todas as demais big techs. Os destaques foram inseridos pela reportagem do DCM.
É o Império da Morte. Hoje nós temos, em relação às mídias sociais, um grupo das chamadas big techs, que são grandes empresas que controlam praticamente 90%, 95% de todo o movimento das mídias, que estão nas mãos de pessoas que são explicitamente comprometidas com o Diabo.
Muitos são satanistas, assim, deliberados. (…) (Essas empresas) estão trabalhando contra Jesus, estão trabalhando a favor da disseminação do pecado e da palavra de Deus.
(…) Nós precisamos saber que, nas mídias sociais, tudo é controlado e tudo é feito para disseminar ideias falsas e contrárias à palavra de Deus.
Assista abaixo ao que está transcrito acima, às vezes é necessário ver para crer. O vídeo se inicia exatamente no ponto destacado.
Há os que poderiam dizer que um juiz que considera que o Facebook é uma empresa controlada pelo Diabo deveria se declarar impedido para julgar um processo em que uma das partes é o Facebook. Certamente não é o caso do juiz Caramuru. Ele está sempre pronto para usar a Justiça terrena para punir as empresas que supostamente descumprem os mandamentos do seu Deus.
No dia 13 de outubro deste ano, no mesmo período entre o primeiro e o segundo turno das eleições, o juiz Caramuru novamente ganhou as páginas da imprensa comercial brasileira. Desta feita, foi por ter multado a empresa Apple em R$ 100 milhões por danos sociais causados pela venda de aparelhos celulares sem carregador.
Novamente, a grande imprensa publicou trechos da sentença, e detalhou todas as sanções que o magistrado aplicava à big tech, como fez, por exemplo, o portal UOL:
A decisão é do juiz Caramuru Afonso Francisco, da 18ª Vara Cível, que também mandou a empresa entregar carregadores a todos os clientes que compraram os celulares da marca a partir de 13 de outubro de 2020 e ainda vender o item junto para novos consumidores que comprarem os telefones móveis.
Sobre os argumentos dos advogados da Apple no processo, nenhuma palavra publicada, somente trechos da sentença do juiz e dos argumentos dos advogados da parte que ingressou com a ação contra a empresa.

Alguns detalhes importantes foram deixados de fora das referidas reportagens. Por exemplo, sobre a banca de advogados que representa a parte que ingressou com a ação contra a Apple. Chama-se Nelson Wilians e Advogados Associados. É o maior escritório de advocaia empresarial do Brasil e da América Latina, posto que alcançou ao fechar um contrato multimilionário com o Banco do Brasil, em 2016.
Seu sócio fundador, Nelson Wilians Fratoni Rodrigues, além de advogado, é Cônsul Honorário da Hungria, palestrante e colunista da revista Forbes. Dos mais de 1.500 advogados do escritório, é o próprio Wilians quem assina as petições do processo contra a Aplle (processo número 1078527-71.2022.8.26.0100).
E quem é a outra parte no processo, a parte que provocou a Justiça e gerou a multa arbitrada pelo juiz Caramuru, a parte que contratou o maior escritório de advocacia do país para representá-la?
Errou quem pensou se tratar de um milionário contrariado com a compra de um aparelho telefônico ou uma grande empresa frustrada em uma aquisição milionária de celulares que acabaram por ser entregues sem os seus carregadores.
Trata-se da ABMCC (Associação Brasileira dos Mutuários, Consumidores e Contribuintes). A associação fez uso da chamada ação civil pública, ou seja, ingressou na Justiça para defender o direito dos consumidores como um todo, e não o seu próprio ou de seus associados. Trata-se de uma associação criada para defender mutuários do sistema habitacional, sem a capacidade legal de ingressar com ações civis públicas no âmbito do Direito do Consumidor. Os advogados da Apple apontaram este problema (entre outros 35) para o juiz Caramuru:
A ABMCC não ajuizou a presente ação com o propósito de defender os interesses de seus associados – se é que existem –, mas sim de forma oportunista e temerária, na tentativa de receber atenção midiática e, eventualmente, honorários de sucumbência em valores milionários, eis que pleiteia a condenação da Apple ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 100 milhões.

Nada disso sensibilizou o juiz Caramuru. Tampouco teve qualquer efeito a informação transmitida ao magistrado de que a ABMCC – tal qual fez o deputado Eduardo Bolsonaro – ingressou com uma ação judicial idêntica a outra previamente peticionada, em trâmite perante a 2ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro (processo número 0281999-51.2021.8.19.0001). Além disso, ainda uma terceira ação civil pública, movida em Santa Catarina, com idêntico pedido, já foi decidida, com vitória para a big tech.
A ABMCC é uma associação com sede na cidade de Natal, no Rio Grande do Norte, que não possui um site, não possui quadro de associados, não possui qualquer forma de ser alcançada por consumidores ou mutuários que queiram fazer reclamações ou solicitar ajuda da entidade.
Por algum motivo, a associação decidiu vir a São Paulo para fazer seu pedido junto ao Fórum Central da Comarca de São Paulo. A lide acabou por cair nas mãos do juiz da 18ª Vara Cível, Caramuru Afonso Francisco, aquele que vê o Diabo por trás das big techs.
Por obra do destino ou de algum outro obreiro, fato é que a sorte da ABMCC mudou a partir do momento em que Caramuru passou a empunhar a espada da Justiça para julgar o processo, que agora corre em segunda instância.
Por fim, o presidente da ABMCC se chama Décio Sturba, e ele é a única pessoa que tem qualquer relação com a tal entidade, segundo os documentos que a própria associação apresentou no processo, em que não consta o nome de qualquer sócio, e sim apenas o de seu presidente, Décio Sturba.
Na página da associação no Facebook, só o que existem são postagens pessoais de Sturba, que nada têm a ver com defesa de mutuários ou consumidores, como se vê abaixo.

Em julho de 2021, o juiz e pastor julgou improcedente a acusação do Ministério Público do Estado de São Paulo contra o youtuber Júlio Cocielo. Em setembro de 2020, o influenciador se tornara réu acusado de racismo após comentários feitos nas redes sociais durante a Copa do Mundo de 2018 (ele publicou, por exemplo, que Mbappé, da seleção da França, “conseguiria fazer arrastões top na praia”).
O juiz Caramuru afirmou em sua decisão que Cocielo “não agiu com dolo” e “não é racista nem jamais defendeu o supremacismo racial”. Ele ainda aproveitou para citar Luiz Inácio Lula da Silva em sua sentença:
Quando se verifica o requerido (Julio Cocielo), é inegável que ele não se enquadra no fenótipo da ‘gente branca, de olhos azuis’, como certa vez mencionou o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando trouxe bem a ideia que perpassa toda a discussão a respeito do racismo, em que se considera que há um grupo dito ‘superior’, que teria ‘supremacia’, os ‘brancos’ e o grupo dito ‘inferior’, que seriam os ‘negros’”.
É que o juiz e pastor Caramuru, além de estar sempre pronto para enfrentar o demônio e as big techs, também é um soldado contra a “ditadura do politicamente correto”, que tem por consequência levar o país ao comunismo, que representa nada menos do que a morte da palavra de Deus e a vitória de Satanás.
Caramuru leciona regularmente tais ideias. Ele é professor da Escola Bíblica Dominical, entidade ligada à Assembleia de Deus e à editora que publica os livros e apostilas distribuídos (vendidos) em todas as escolas dominicais ligadas à Assembleia de Deus e outras denominações.
Aliás, quem acompanha o pastor e juiz nas redes sociais percebe que a atividade de sacerdócio e docência religiosa é de longe a principal de sua vida. Do início do mês de dezembro até a data de publicação desta reportagem, o magistrado já havia publicado oito postagens acerca de suas atividades espirituais, sejam aulas, participações em cultos ou artigos com temática religiosa. Sobre Direito e Justiça, nenhuma.
Entre tais publicações, está um artigo cujo título é “O Cristão e o politicamente incorreto”. Ele foi publicado na última sexta-feira (23), no jornal “Ceifeiros em Chamas”, que se define como “um órgão de conscientização missionária das igrejas Assembleias de Deus Ministério do Belém em São Paulo.”
No artigo, o juiz, pastor e professor explica por que absolveu o influenciador acusado de racismo e por que é contra o “politicamente correto”. Leia trecho abaixo, com destaques inseridos pela reportagem do DCM:
Se tem introduzido em nossa sociedade o chamado “politicamente correto”, que nada mais é que uma tentativa de se instituir uma linguagem sem preconceitos, igualitária, que suprima as “desigualdades sociais”, a “injustiça social”, enfim, uma linguagem que procure instituir a “sociedade perfeita” defendida pelos igualitaristas, por aqueles que querem uma “sociedade sem classes”, enfim, o “comunismo”, que seria este estágio final de absoluta igualdade entre todos os seres humanos.
(…) Esta manipulação da linguagem alcança um realce grande no movimento comunista internacional, que tem, já há algumas décadas, adotado a técnica da “persuasão implícita”, do chamado “marxismo cultural” como sua principal arma para tentar controlar as nações e impor suas ideias materialistas e ateias sobre a humanidade.
É o que o dr. Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995), pensador católico anticomunista, criador da TFP (Tradição, Família e Propriedade) denominava de “baldeação ideológica inadvertida”, assim definida: “…atuar sobre o espírito de outrem, levando-o a mudar de ideologia sem que o perceba”.
O filósofo Olavo de Carvalho (1947-2022) bem demonstrou que esta manipulação de linguagem começa com a criação de uma “falsa linguagem formal” em que, propositadamente, a necessária linguagem formal que permite a compreensão entre todos é substituída por uma “linguagem informal”, que é própria de pequenos grupos e que jamais pode ser disseminada por toda a sociedade.
Olavo de Carvalho, Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP, marxismo cultural, movimento comunista internacional. Um autêntico cidadão de bem, o juiz que deu vitória para Eduardo Bolsonaro contra o Facebook. Bolsonarista, não faz questão de esconder tal fato, como se verifica nas reproduções de postagens de suas redes sociais, abaixo e no topo desta reportagem, inclusive uma do dia 1º de novembro, logo após a derrota de Jair Bolsonaro nas urnas, em que o pastor e juiz Caramuru anuncia: “Eu fiz a minha parte”.
Fez mesmo, e continua fazendo. Espera-se, agora, que o CNJ faça a sua.


