Saiba por que o bitcoin é pior que um esquema de pirâmide

Atualizado em 1 de janeiro de 2022 às 12:16
Veja Bitcoin
Bitcoin. Foto: Wikimedia Commons

Esse artigo foi publicado no site do jornal Financial Times (circulando, portanto, em um veículo de comunicação que faz parte do próprio núcleo do sistema financeiro global). Foi escrito por Robert McCauley, professor do Centro de Política Global de Desenvolvimento da Universidade de Boston e membro da Faculdade de História da Universidade de Oxford.

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Bitcoin e esquema de pirâmide

O Bitcoin vem recuando de seu recorde histórico de $69.000, estabelecido em 9 de novembro de 2021. Sofreu uma queda repentina de $12.000 no primeiro fim de semana de dezembro, em meio ao fechamento de contas com posições alavancadas. Ainda assim, mesmo com o preço atual de US $49.000, convidados do noticiário financeiro na TV continuam a promovê-lo como o ativo de melhor desempenho dos últimos N anos, onde N pode ser praticamente qualquer número de um a dez. Eles também o julgam cada vez mais como um investimento confiável por si mesmo.

Isso contradiz a visão cética de longa data de muitos economistas e outras pessoas sobre como o bitcoin se trataria, na realidade, de um esquema de pirâmide ao estilo Ponzi. O cientista da computação Jorge Stolfi é uma das vozes nesse sentido. Sua visão é baseada nas seguintes observações:

  1. Os investidores compram na expectativa de lucros.
  2. Essa expectativa é sustentada pelos lucros de quem está sacando o dinheiro investido.
  3. Mas não há fonte externa para esses lucros; eles vêm inteiramente dos novos investimentos.
  4. Além disso, os operadores levam uma grande parte desse dinheiro.

Sim, sim, tudo isso soa bem verdadeiro. Contudo, ao chamarem o bitcoin de esquema Ponzi, é possível dizer que os críticos estão sendo gentis demais em dois aspectos. Em primeiro lugar, o bitcoin não tem o mesmo fim de jogo que uma fraude no estilo Ponzi; em segundo lugar, a partir de uma perspectiva social mais abrangente, o bitcoin constitui um jogo de soma profundamente negativa.

Com relação ao primeiro ponto, vale a pena avaliar como o bitcoin se compara ao esquema original desenvolvido por Charles Ponzi. Em 1920, Ponzi prometeu 50% de lucro sobre um investimento em 45 dias, que conseguiu pagar a um certo número de investidores. Ele teve de enfrentar e conseguiu sobreviver às corridas de saques por investidores por um tempo, até que finalmente o esquema entrou em colapso em menos de um ano.

Naquele que foi o maior [em valores] e provavelmente o mais longo esquema Ponzi da história, Bernie Madoff pagava rendimentos de cerca de 1% ao mês, e oferecia aos participantes de seu esquema a possibilidade de sacar, a qualquer momento, tanto a soma originalmente “investida” quanto o “retorno” sobre ela. Como resultado, o esquema poderia sofrer uma corrida de saques, e de fato, sofreu; a Grande Crise Financeira de 2008 levou a uma cascata de resgates pelos participantes e ao colapso do esquema.

Mas a resolução do esquema de Madoff se estendeu para além de seu colapso, por conta de procedimentos legais impressionantes, ainda em andamento – e que, inclusive, sobreviveram ao próprio Madoff, que faleceu no início de 2021.

Muitos não sabem que um administrador de falências, Irving H. Picard, tem perseguido obstinadamente e com sucesso aqueles que tiraram mais dinheiro do esquema do que haviam investido. Ele conseguiu inclusive seguir o dinheiro até contas em dólares em paraísos fiscais, colocando em litígio na Suprema Corte dos EUA um polêmico alcance extraterritorial da Lei dos EUA. Dos US $20 bilhões em investimentos originais reconhecidos no esquema (às vítimas fora dito que o valor teria atingido mais de três vezes essa soma), cerca de US $14 bilhões, impressionantes 70%, já foram recuperados e redistribuídos. Reivindicações que chegam até US $1,6 milhão estão sendo totalmente reembolsadas.

Em contraste com os investimentos com Madoff, o Bitcoin é comprado não como um ativo que gera renda, mas sim como um título perpétuo de cupom zero (ou “zero-coupon perpetual”) – em outras palavras, ele não promete nada na forma de um rendimento contínuo e nunca chega a uma data de vencimento/maturação que gere um pagamento final obrigatório. Decorrente disso, o bitcoin não pode sofrer uma corrida; a única maneira de um detentor de bitcoin sacar seu dinheiro é vendendo o título a outra pessoa.

O colapso do Bitcoin seria muito diferente dos colapsos dos esquemas de Ponzi ou Madoff. Um possível gatilho poderia ser o colapso de alguma das grandes “stablecoins” [ou “moedasestáveis”], ou seja, ativos que servem como substitutos de dólares estadunidenses que surgiram para fornecer uma perna (“leg”) de dinheiro para transações com criptomoedas [e que por isso também são chamados de “criptoativos”]. Esses “fundos de mercado monetário não-regulamentados” têm sido vendidos como equivalentes de dólar baseados em ativos seguros que compensariam aos seus passivos pendentes. Dada a falta de regulação e transparência, não é difícil imaginar uma grande stablecoin “quebrando o barreira do valor principal”, como ocorreu com um fundo do mercado monetário regulado que detinha papéis do Lehman em 2008. Isso poderia romper com toda a ecologia das criptomoedas, de maneira que poderia não haver lances pelo bitcoin. O mercado poderia ter de fechar indefinidamente.

Nesse caso, não haveria nenhum esforço legal de longo prazo para procurar aqueles que trocaram seus bitcoins por dinheiro mais cedo, a fim de redistribuir seus lucros para aqueles que tivessem ficado com os bitcoins em mãos. Os detentores de bitcoins não teriam direito algum a reivindicar contra aqueles que compraram e venderam antes deles.

Em seu fluxo, o bitcoin se assemelha mais a um esquema de “inflar-e-largar” (“pump and dump”) de ações ordinárias do que a um esquema de pirâmide no estilo Ponzi. Em um esquema de inflar-e-largar, os corretores adquirem ações basicamente sem valor, as promovem e talvez as negociam entre si a preços crescentes antes de descarregá-las sobre aqueles atraídos pelo falatório em torno das ações e pela dinâmica do seu preço. Como os esquemas de inflar-e-largar, o bitcoin atende ao desejo puro de ganhos de capital. Os compradores não suportam ver amigos enriquecendo da noite para o dia: eles sofrem um temor agudo de perder essa chance. De qualquer maneira, o bitcoin não faz nenhuma promessa e não pode terminar com o mesmo fim de um esquema Ponzi.

Quanto ao segundo aspecto, outra grande diferença entre o bitcoin e um esquema Ponzi é que, do ponto de vista agregado ou social, o primeiro é um jogo de soma negativa. Na medida em que recursos reais são usados para operar o bitcoin, ele é caro de uma forma que a operação de dois ou três homens de Madoff jamais seria. Do ponto de vista social, o que Madoff tirava de seu esquema e consumia era uma redistribuição em um jogo de soma zero (o administrador da falência vendeu a cobertura que ele havia comprado). A quarta observação de Stolfi acima, de que “os operadores levam uma grande parte desse dinheiro”, amontoa na mesma categoria as receitas dos mineiros de bitcoin e o dinheiro retirado por Madoff, mas eles são muito diferentes em termos econômicos.

Com bitcoin e outras criptomoedas, a brincadeira é tentar adivinhar qual o país cujo consumo de eletricidade vai igualar ao de todos os solucionadores de quebra-cabeças (mineradores) que conseguem efetivar transações e receber bitcoins como recompensa. Mesmo se o preço da eletricidade incluísse sua contribuição para o aquecimento global (sua “externalidade ambiental”) – o que presumivelmente não inclui – isso representa um custo real.

Quão grande é esse custo? No início de 2021, Stolfi estabeleceu os pagamentos cumulativos dos mineradores de bitcoin desde 2009 em US $15 bilhões. Com o preço do bitcoin na época, ele calculou o aumento dessa quantia em cerca de US $30 milhões por dia, principalmente em eletricidade.

Com os preços de bitcoin mais altos de hoje, o buraco está crescendo mais rápido. Cerca de 900 novos bitcoins por dia requerem a maior parte de US $45 milhões por dia gasto em eletricidade. Portanto, a soma negativa no jogo do bitcoin é de dezenas de bilhões de dólares e está crescendo por mais de um bilhão de dólares ao mês. Se o preço do bitcoin colapsar até zero, os ganhos daqueles que venderem ficariam aquém das perdas dos detentores por essa soma crescente. Comparar o bitcoin a um esquema Ponzi ou um esquema de inflar-e-largar, ambos basicamente redistributivos, é ser lisonjeiro com o sistema de criptomoeda.

Para concluir, uma análise econômica do bitcoin deve reconhecer sua singularidade na história das manias. Como objeto de especulação, o bitcoin não tem precedentes no grau em que chega a sua ausência de lado bom para compensar o que tem de negativo. Essa mania pós-moderna conta com preços altos para entrada, sem registros nas planilhas de quem quer que seja. Um título perpétuo de cupom zero surgiu não como uma piada, mas como um ativo de um trilhão de dólares. Ao contrário de um esquema Ponzi, o bitcoin não pode terminar em uma corrida.

Em caso de colapso, os detentores do bitcoin perderão coletivamente o que tiverem pago aos mineiros pelos seus bitcoins. Essa soma pode não estar longe da soma originalmente investida com Madoff, após contabilizar a inflação. No entanto, os detentores de bitcoins não terão ninguém para perseguir para recuperar essa quantia: ela simplesmente terá virado fumaça, uma perda social. Os detentores dos bitcoin então vão desejar que ele tivesse mesmo sido um esquema Ponzi.

tradução: Everton Lourenço

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