“Bolsonaristas não são bem-vindos em Portugal porque partilham valores antidemocráticos”, diz jornalista português ao DCM

Atualizado em 20 de agosto de 2022 às 10:18
Manuel Carvalho
O jornalista Manuel Carvalho. Foto: Arquivo pessoal

O jornal português Público foi notícia no Brasil ao publicar um editorial afirmando que bolsonaristas não são bem-vindos no país. O texto parte de uma evidência e não entra em detalhes sobre o comportamento desses cidadãos na terrinha. Afinal, o objetivo era defender o conjunto da imigração brasileira e de outras ex-colônias portuguesas.

Em entrevista ao DCM, Manuel Carvalho, editorialista e diretor do jornal do Porto, explica as razões da hostilidade a esse eleitorado no país. Um retrato chocante do bolsonarismo, que mostra não se tratar de um nacionalismo meia-boca.

Além do brasileiro, o que se observa é que quer desmantelar o Estado onde quer que esteja e acabar com o acesso universal e gratuito a setores como educação e saúde.

“Eu, como cidadão português, não estou muito interessado em acolher cidadãos do Brasil ou de qualquer outro país que venham aqui para por em dúvida, combater e degradar o nível de confiança que a sociedade portuguesa tem nos valores da democracia, no Estado de Direito e no Estado social”, diz o jornalista.

Seu relato mostra que os brasileiros bolsonaristas transportam para Portugal os hábitos e pensamentos mais retrógrados do Brasil. “Os condomínios de ricos proliferam e refletem ideias contrárias às de uma sociedade solidária e coesa. É algo que muito sinceramente me ofende.”

O diretor do jornal Público comenta a perplexidade dos portugueses em relação ao voto Bolsonaro. Fala da perda de apoio ao presidente do Brasil na direita portuguesa e do racismo contra brasileiros.

DCM: Qual foi a recepção do seu editorial “A dádiva da imigração”, uma defesa da imigração brasileira e das demais ex-colônias portuguesas à terrinha?

Manuel Carvalho: Nós conseguimos medir o efeito dos textos que nós escrevemos pelo tráfego que têm na internet, pela divulgação que têm nas redes sociais e pelas caixas de comentários dos jornais.

Do ponto de vista quantitativo, do índice de leitura, foi um texto bastante lido em relação aos editoriais que nós publicamos. Do ponto de vista qualitativo, a maioria esmagadora dos comentários na caixa de e-mails do Público, também foram claramente positivos.

Vários leitores disseram que partilhavam completamente da leitura que eu fazia da questão da imigração em Portugal e em particular a imigração de cidadãos brasileiros.

Cidadãos portugueses que compartilhavam sua percepção?

Sim. É provável que alguns daqueles comentários são feitos por leitores do público brasileiro, mas sinceramente não consigo distinguir uns dos outros.

Em seu editorial, os bolsonaristas não são bem-vindos. Por quê?

Porque são pessoas que partilham claramente valores antidemocráticos, que desafiam e contestam valores fundamentais do nosso ordenamento social que está consagrado na nossa constituição, seja o respeito pelas minorias, seja pelo estado social que garante direitos sociais mínimos a todos os cidadãos.

Eu, como cidadão português, não estou muito interessado em acolher cidadãos do Brasil ou de qualquer outro país que venham aqui para por em duvida, combater e degradar o nível de confiança que a sociedade portuguesa tem nos valores da democracia, no Estado de Direito e no Estado social.

Por exemplo, ver cidadãos brasileiros e dizem que a democracia portuguesa é socialista ou comunista, muito sinceramente, incomoda. Convém observar que não há nenhuma razão consagrada pela lei que impeça bolsonaristas de vir viver em Portugal. Portugal é um país livre.

Os bolsonaristas em Portugal respeitam o governo socialista de António Costa?

As manifestações que nós observamos de uma pequena parte da imigração brasileira nas redes, eu não diria que desrespeitam, mas não gostam, combatem, criticam.

Só que há muitas formas de não gostar, combater e de criticar o governo. Aliás, fazê-lo é parte essencial da democracia. O que mais me preocupa é a argumentação, ou seja as ideias, os motivos, essas pessoas criticam, por exemplo, a escola pública em Portugal, isto é, ser universal, ser de acesso a todos os cidadãos, de ninguém pagar. Ou de a saúde ser pública e garantida a todos os cidadãos.

Ver alguém que vem de fora e critica esses consensos e considerando que essa forma do Estado e da sociedade portuguesa providenciar educação gratuita a seus cidadãos, dizendo que é comunismo, socialismo, não acho que seja uma questão saudável para a discussão.

Se há consenso na sociedade portuguesa, da esquerda mais extrema até a direita mais extrema, é que o Estado tem uma obrigação constitucional que todas as pessoas respeitam e defendem.

Ver esse tipo de argumentação de algumas pessoas mais extremas, portanto do bolsonarismo é algo que nos deixa um pouco perplexos. Isso me incomoda e não dou as boas-vindas a brasileiros que criticam compromissos sociais que para nós são sagrados.

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No seu editorial, você diz que tampouco são bem-vindos os brasileiros que querem construir condomínios fechados em Portugal com quarto para babá. Como você e os portugueses de um modo geral veem essa prática?

Com muito criticismo. Eu compreendo um mecanismo de defesa de um cidadão que viva numa zona mais perigosa do Rio de Janeiro ou de São Paulo tenha tendência a preferir condomínios fechados. Em Portugal, os condomínios fechados já existiam antes da chegada dos brasileiros.

Agora esse tipo de procura aumentou com a vinda de uma população imigrante do Brasil com muito mais riqueza, com muito mais poder de compra. Isto está aumentando.

Eu não vejo sentido desse tipo de prática em Portugal porque os níveis de segurança pública estão entre os cinco melhores do mundo no que toca sair de casa em segurança quando quiser, as crianças brincarem na rua, irem para a escola, pegar o ônibus ou o metrô.

Nas nossas cidades, os condomínios de ricos proliferam e refletem ideias contrárias às de uma sociedade solidária e coesa. É algo que muito sinceramente me ofende.

Mais grave para mim é o fato de que muitas dessas construções são as exigências de brasileiros de haver quartos cuja dignidade não é a mesma dos quartos da família para babás e empregadas domésticas. Isso implica uma atitude e uma sobranceria, um hábito que não temos.

Se temos, é algo para o que temos feito politicamente um grande esforço para combater e portanto estamos muito abertos e dispostos a ver igualdade social e respeito por todas as profissões.

Essas questões que estamos discutindo estão contidas num pequeno parágrafo. No essencial, aquilo que eu digo sobre a imigração de brasileiros é uma mensagem extraordinariamente positiva.

Nós queremos que sejam bem recebidos. Portugal sempre foi um país de emigrantes. Não pode, pelo contrário tem o dever de bem receber todos aqueles que querem aqui viver de braços abertos.

Pela facilidade de língua, de inserção social, pelo contributo que eles nos dão nas nossas escolas, na nossa sociedade, é uma dádiva, como diz o título, para Portugal que haja essa vontade de muitos jovens e pessoas não tão jovens.

Não é uma contradição o perfil de brasileiros vivendo em Portugal quando, segundo as pesquisas de intenção de voto, são justamente as classes mais abastadas as maiores apoiadoras de Bolsonaro?

Eu diria que sim. Qualquer país europeu, mesmo países europeus governados por partidos mais conservadores, à direita, têm por base sistemas políticos de funcionamento e de previdência social que são a mais completa negação daquilo que o bolsonarismo defende, exatamente o contrário.

O regime político ou o modelo social europeu não tem absolutamente nada a ver com aquilo que é o bolsonarismo. O respeito pelas liberdades cívicas, pelas minorias, pela liberdade de imprensa, pela liberdade de expressão, que estão consagradas em qualquer democracia europeia contrária em absoluta aquilo que são os tiques autoritários do bolsonarismo.

Então eu compreendo sua pergunta. Um brasileiro que é rico e defende Bolsonaro só pode vir a Portugal por questões de natureza utilitária. Não é por partido político. Porque Portugal é seguro, permite que quem tenha residência no país tenha acesso a outros países da União Europeia e do Espaço Schengen, porque é um bom lugar para investir no setor imobiliário, no turismo e na tecnologia. Não é por se identificarem com a política e os valores sociais que cultivamos aqui.

Essas questões que estamos discutindo estão contidas num pequeno parágrafo. No essencial, aquilo que eu digo sobre a imigração de brasileiros é uma mensagem extraordinariamente positiva.

Nós queremos que sejam bem recebidos. Portugal sempre foi um país de emigrantes. Não pode, pelo contrário tem o dever de bem receber todos aqueles que querem aqui viver de braços abertos.

Pela facilidade de língua, de inserção social, pelo contributo que eles nos dão nas nossas escolas, na nossa sociedade, é uma dádiva, como diz o título, para Portugal que haja essa vontade de muitos jovens e pessoas não tão jovens.

Bolsonaristas em Portugal

Falando em valores portugueses e europeus, empresários bolsonaristas já estão defendendo um golpe de Estado. Para os portugueses, que conheceram uma ditadura de longa duração, é chocante? Os brasileiros bolsonaristas que vivem em Portugal fazem uma defesa do regime de Salazar?

Eu não tenho conhecimento público disso. Aquilo que os brasileiros bolsonaristas que vivem em Portugal dizem fazem-no em redes sociais de forma mais ou menos camuflada. Ou defendem-no em reuniões entre eles.

Não há uma afirmação pública de cidadãos do Brasil que vivem em Portugal no sentido de dizer “eu migrei para Portugal, eu sou bolsonarista”.

Nas presidenciais anteriores, a comunidade brasileira em Portugal votou muito significativamente em Bolsonaro. Estou curioso para saber o que vai acontecer nas próximas eleições. A impressão que eu tenho é de que a maioria esmagadora da comunidade brasileira que vive em Portugal é claramente democrata, progressista, aberta, tolerante, não tem nada a ver com o bolsonarismo.

A impressão de nós, cidadãos portugueses, em relação àquilo que acontece no Brasil é fundamentalmente de perplexidade.

Mesmo sabendo que o Brasil tem imensos problemas sociais, tem um índice de desigualdade que torna a prevalência da democracia muito difícil de se concretizar, apesar de todas as conquistas que teve desde a Constituição de 1988, com os progressos sociais que teve na última década e meia, com a elite que tem na ciência, na cultura, nas letras, nas artes, como é que pode o brasileiro ter eleito um homem como Bolsonaro?

E continuar a ter uma parte significativa de sua população que acredita na mensagem política e no valor político do bolsonarismo?

Sim, eu diria que há em Portugal uma certa perplexidade sobre como isso é possível num país com as características do Brasil.

Depois da eleição de Bolsonaro, na sequência da Lava Jato, dos escândalos de corrupção, do impeachment da Dilma, havia  segmentos da direita que achavam que haver um líder com certo nível de autoritarismo de direita seria bom para reposicionar, reequilibrar o sistema político do Brasil.

Essas pessoas, mais à direita, de Portugal deixaram de defender essas posições porque perceberam que defender Bolsonaro é defender o indefensável: o golpismo, o autoritarismo, a insensibilidade social, o desprezo por valores, etc. Bolsonaro deixou de ter apoio expressivo em Portugal nos últimos anos.

Tem sido muito noticiado na imprensa brasileira o aumento no número de denúncias de casos de racismo contra brasileiros em Portugal. Como você analisa esse fenômeno?

Analiso com preocupação. Aquilo que eu defendo no editorial é que tem que haver uma mobilização de toda a sociedade portuguesa no sentido de defender os imigrantes.

Coloquemos as coisas na sua devida proporção. Portugal é um país onde há racismo. Não há outra palavra. Há pessoas que continuam sendo incapazes de perceber ou aceitar valores de igualdade racial, o que é incompreensível.

Mas o fato de uma comunidade de mais de 300 mil pessoas do Brasil legalizadas, com autorizações de trabalho, há alguns segmentos do mercado de trabalho onde pode haver uma certa tensão porque o fato de ver estrangeiros concorrerem com trabalhadores nacionais dá sempre lugar a atrito e fricção. Sempre foi assim na história do mundo.

Eu vejo de duas formas o fato de haver denúncias de cidadãos brasileiros às instituições portuguesas. Por um lado, havendo mais queixas, há mais casos lamentáveis.

Por outro, vejo isso por um lado positivo, que é o fato de cidadãos brasileiros se sentirem em plena igualdade de direitos em relação aos portugueses para poderem denunciar esses abusos às autoridades.

Ou seja, sentirem-se de tal forma integrados e fazendo parte da sociedade portuguesa, que em vez de sofrerem com abusos e ficarem calados e guardarem o sofrimento para si próprios, sentem que têm os mesmos direitos que quaisquer cidadãos que nasceram em Portugal de fazer as suas queixas às autoridades.

Tem havido abusos de policiais e (quanto a isso) não nos iludamos. A sociedade portuguesa não é perfeita e vai continuar a haver.

De um modo geral, a turma de minha filha tem quatro colegas brasileiros. Na escola, no mundo do trabalho, nas empresas, no turismo, há pessoas brasileiras. Nós que somos jornalistas sabemos: há notícia quando há racismo.

Nós, no Público, somos completamente intransigentes, estaremos sempre ao lado das pessoas que sofrem esse tipo de abusos. Mas não acho que seja bom criar-se a ideia, como eu noto às vezes em alguns relatos da imprensa brasileira, de que isto aqui (Portugal) é o fim do mundo. Não é.

Com 300 mil pessoas, ter 200 casos de racismo em 2021 é muito grave, basta ter um para ser muito grave, mas estamos longe de que seja uma situação alarmante e de uma xenofobia sistemática dos portugueses para com os brasileiros. Isso não existe.