“Bolsonaro é incapaz de construir discurso coerente”: especialistas franceses analisam linguagem do presidente

Atualizado em 15 de agosto de 2019 às 15:51

Publicado na RFI

Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial, em janeiro

POR MARCOS LÚCIO FERNANDES

O presidente Jair Bolsonaro afirmou na sexta-feira (9), em resposta a um questionamento de um jornalista sobre maneiras de preservar o meio ambiente, que bastava “fazer cocô dia sim, dia não”. Em reação à polêmica gerada, o chefe de Estado retrucou, na segunda-feira (12), que não era um “vaselina”, um “politicamente correto” ou muito menos um “isentão”. “Aqui é resposta direta”, disse. O discurso do dirigente foi um dos ingredientes de sua ascensão e vitória nas eleições de 2018, mas especialistas entrevistados pela RFI temem que a normalização dessa linguagem “crua” tenha consequências para a legitimidade do país, tanto no cenário internacional quanto no nível das instituições democráticas no Brasil.

Nas falas de Bolsonaro, há dois aspectos importantes: a forma e o público alvo, aponta Liz Feré, professora de Análise do Discurso na Universidade Sorbonne Paris 8. “E, nesse caso, não estamos falando apenas do eleitorado, mas de toda essa base que é de ordem da estrutura da sociedade. Temos aí os militares, os evangélicos, os lobbies que o apoiaram”, afirma a pesquisadora, que ressalta a coerência dos pronunciamentos do presidente brasileiro com aquilo que ele representa.

“É uma forma discursiva comum nos países de líderes autoritários, como é o caso do ministro do Interior italiano, Matteo Salvini, ou do presidente americano Donald Trump, entre outros”, acrescenta Liz Feré. As tiradas de Bolsonaro – “Não é compatível com um presidente? Votem em outro em 2022, é muito simples”, para citar uma das mais recentes -, que fazem enorme sucesso entre seus apoiadores, são manobras para se esquivar de discussões sérias para as quais o chefe de Estado não tem preparo, analisa a especialista ouvida pela RFI.

Patrick Charaudeau, pesquisador francês e professor da Universidade Paris 13,   faz uma comparação entre o discurso de Bolsonaro e o do ex-candidato à presidência francesa Jean-Marie Le Pen, na época do partido de extrema direita Frente Nacional (atualmente chamado Reunião Nacional). Segundo o especialista, os dois compartilham a mesma linguagem do “carisma do poder e da brutalidade”. “É um paradoxo: quanto mais um líder político se mostra brutal, mais ele terá o favoritismo de uma parte da população que se encontra frustrada”, diz.

Quando estava visitando Ipanema, no Rio de Janeiro, Charaudeau ouviu um barulho que chamou sua atenção. Mais tarde ele se deu conta de que era um grupo de motoqueiros que faziam o sinal das armas com as mãos, como o presidente brasileiro. “Foi muito impressionante. Era o eco da brutalidade da linguagem de Bolsonaro”, declara.

“Eu diria que ele é incapaz de construir um discurso coerente”, declara Liz Ferré, sobre Bolsonaro. “Você vê que ele não fala dentro de um discurso público esperado de um chefe de Estado. Ele fala fora desse contexto protocolar de uma coletiva com jornalistas ou outros dirigentes, como se estivesse dentro de um âmbito de discurso privado, tomando uma cerveja num domingo com amigos.”

Discurso de brincadeira

O problema com a linguagem “franca” e “crua” de Bolsonaro é que ela parece ignorar as regras das instituições que, apesar de seus defeitos, manteve uma certa ordem durante anos. “A atividade dos políticos no Brasil, sobretudo na esfera federal, é submetida a um código de ética e de comportamento voltado à segurança dos valores deontológicos e morais compartilhados pela sociedade. A constituição federal de 1988 prevê, aliás, a perda do mandato de um deputado ou senador que não respeitar os princípios de dignidade ou integridade”, explica Ingrid Bueno Peruchi, professora na Universidade Paris Nanterre e analista do discurso do Brasil contemporâneo.

Para a pesquisadora, o estilo de comunicação de Bolsonaro reforça seu lado “outsider” e o aproxima ainda mais do povo, que leva suas falas “na brincadeira”. “A adoção de um comportamento e de uma comunicação baseados na ética permite uma atividade política mais transparente e democrática e assegura uma representação e um respeito de todos”, lembra Bueno Peruchi. Ela ressalta que o presidente brasileiro nega, em seu discurso, o apoio a minorias LGBT, mulheres ou comunidades indígenas para restaurar “uma tradição e os direitos de uma suposta maioria conservadora”.

As táticas discursivas de Bolsonaro não são inovadoras e são investigadas há muitos anos. Birgitta Dresp, especialista do Centro Nacional de Pesquisas Científicas (CNRS, na sigla em francês), estuda o assunto e consegue descrever o passo-a-passo para produzir esse tipo de linguagem. Ela cita, por exemplo, as contradições entre vários assuntos, o uso de mentiras que podem ser provadas com fatos, a recusa em responder uma questão que acabou de ser feita ou respostas inadequadas.

“A maneira como um discurso será recebido por uma audiência não depende apenas de seu caráter verídico ou tangível, mas sobretudo da capacidade do orador de captar a atenção da audiência”, diz Birgitta Dresp. “É um processo de sedução e não de comunicação no sentido científico do termo. A sedução ocorre por meio de vários mecanismos: o chocante pode seduzir às vezes até mais do que que é agradável. Tudo é uma questão de contexto no discurso político.”

A questão principal, de acordo com Liz Feré, é que, ao invés de questionar e cobrar um posicionamento mais de acordo com as normas internacionais da retórica de um presidente, boa parte dos apoiadores de Bolsonaro gostam dele justamente por sua atitude de provocação diante das instituições políticas clássicas. “Ele ganhou as eleições exatamente com esse discurso, por causa desse discurso. O mais grave é que foi se instalando, aos poucos, essa possibilidade de aceitar isso”, analisa.

Entre os estudantes estrangeiros de Liz Ferré, o espanto é generalizado, mas existe uma dificuldade em explicar como esse tipo de retórica passou a ser normalizada. “Nem Trump, nem Salvini fazem derrapagens tão nítidas, fortes e violentas quanto nós temos no Brasil. Para um país que emergiu na cena internacional, hoje nós temos uma ridicularização provocada pelo chefe de Estado, seu comportamento, as palavras utilizadas”, critica a professora.