Bolsonaro e o pinochetismo à brasileira. Por Yuri Carajelescov

Atualizado em 5 de novembro de 2018 às 10:52
Paulo Guedes e Jair Bolsonaro. Foto: Reprodução/Twitter

POR YURI CARAJELESCOV, doutor em Direito Econômico pela USP, mestre em Ciências Jurídico-políticas pela Universidade de Coimbra

O Brasil caminha para a instituição de um novo regime e não é exagero dizer que a chamada Nova República, com seu arcabouço constitucional, que agonizava desde o impeachment sem crime de responsabilidade de 2016, está morta.

O poder, essencialmente civil, exercido por políticos, jornalistas (mídia), juízes e procuradores trocará de mãos e passará às forças de segurança do Estado: policiais civis e militares, polícia federal e forças armadas, além de outros grupos paramilitares ainda opacos, cuja missão ainda não está dada. Serão esses os novos guardiões dos valores e interesses supremos do capital, por isso, doravante, jornalistas tenderão a ter menos importância que jornaleiros, juízes menos que soldados, procuradores menos que cabos e políticos terão de orbitar e servir aos senhores de fardas para sobreviver.

Ao contrário de 1964, tudo isso com o consentimento das urnas. Parcela majoritária do povo derrotado e exaurido por práticas políticas que o enojam, ou o que percebia delas através das lentes não isentas dos meios de comunicação, delegou a uma instância em armas o poder de decidir em seu lugar.

As palavras trôpegas, muitas vezes grosseiras, e a oratória sofrível do presidente eleito não chegam a disfarçar um projeto que está muito além de sua figura caricata. Bolsonaro apenas viabilizou eleitoralmente um novo regime para o qual já é praticamente irrelevante, assentado sobre três bases articuladas, que se harmonizam e se complementam: (i) plano econômico: o aprofundamento das reformas ultraliberais iniciadas nos governos Collor/FHC e parcialmente interrompidas no período petista; (ii) estado penal: a maximização do poder punitivo estatal e paraestatal e (iii) liberdades civis: a compressão dos direitos civis, como meio de legitimação de todo o projeto.

O economista do mercado financeiro Paulo Guedes, apresentado ao país como o novo czar da economia, sem maior cerimônia, recém anunciou o propósito de demolir os alicerces da social-democracia brasileira, ou seja, derrubar o precário estado social erigido pela CF/88, como se o país gozasse de um colchão de proteção social comparável ao dos escandinavos e não fosse um dos mais desiguais do planeta. Está claro, portanto, que o juramento à Constituição cidadã que seu chefe fará perante o Congresso não passará de uma formalidade burocrática.

O guru inclui em seu pacote, entre outras medidas, a desregulamentação do mercado de trabalho ainda mais profunda que a patrocinada por Temer, prevalecendo a livre negociação entre trabalhadores e patrões – a tal carteira de trabalho “verde e amarela” -, um amplo programa de desestatização a ser financiado pelo BNDES – na campanha cogitou-se a privatização de todo o setor elétrico, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e da Petrobras -, a regressividade tributária com alíquota única linear (20%) do imposto de renda das pessoas físicas, o corte radical de investimentos públicos e a manutenção da EC 95, com vistas a “zerar o déficit público”, reforma da previdência com a adoção do modelo de capitalização sem aportes do Estado e patronais, independência formal do Banco Central, além de “retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81.”

Mencionada no programa de governo de Bolsonaro – “O caminho da prosperidade” – em caráter meramente exemplificativo, essa emenda constitucional, como se sabe, determinou a expropriação de propriedades privadas exploradas pelo tráfico de drogas e pelo trabalho escravo.

A radicalidade desse quase-programa, porquanto ainda não totalmente explicitado e do qual se conhece apenas as linhas mais gerais, em termos práticos, inviabilizará o compromisso que a finada Constituição Federal buscou construir entre as forças do capital e do trabalho em franca desvantagem para este último, e porá um ponto final nas negociações entre os envolvidos, assinalando que o diálogo e as concessões mútuas não são mais possíveis. Trata-se de uma versão ainda não verbalizada do “prendo e arrebento” de outros tempos, mas que os capitalistas já compreenderam e por isso prestaram apoio.

É certo que essa pauta, uma vez implementada, provocará a brutal desvalorização da força de trabalho e a diminuição da participação da massa salarial no PIB, a elevada concentração de renda e a deterioração ainda mais intensa do tecido social, com a precarização dos serviços de assistência social, saúde e educação públicas, premidos pelo garrote da limitação constitucional dos gastos públicos, pretexto conveniente para encobrir a falta de compromisso político do governo que se inicia com essas demandas.

Tanto para implantação desse estado econômico mínimo como para a sua sustentação será preciso conceber um estado penal máximo, que contenha na base do tacape a exclusão dos derrotados, considerados inimigos internos nos termos da conhecida doutrina da segurança nacional, que ainda inspira as mentes e os corações de anacrônicos militares, agora atualizada com os princípios do direito penal do inimigo, que encontrou no “mensalão” e na Lava Jato os módulos de ingresso no panorama jurídico dominante brasileiro.

As propostas de endurecimento das penas e de sua execução, sob o pretexto de combate à corrupção, a licença para matar que se pretende conceder às forças policiais sob o disfarce mal ajambrado de uma ininteligível “retaguarda jurídica” e “excludente de ilicitude” para a ação policial, a redução da maioridade penal para 16 anos, a tipificação das ações do movimento social que luta pela reforma urbana e agrária, o mais bem articulado do país e por isso alvo privilegiado, como terrorismo não revelam um fim em si mesmas, mas se constituem em instrumentos para a garantia da eficácia da ação econômica. Repousa no mesmo escaninho a proposta de armar a população, um convite para a formação de milícias de proprietários e para a autotutela em um país que é campeão mundial de homicídios.

Pelo menos desde Stalin e Hitler, passando pela ditadura brasileira de 64, cada vez mais os regimes de força, eleitos ou não, se constituem sob o primado de procedimentos e legalidades, por isso o programa de governo de Bolsonaro é farto em sinalizar que todas as suas ações terão amparo na lei, devidamente formatada e aplicada para tutelar uma ordem econômica excludente e a manutenção do poder. Não deixa de ser coerente a indicação do juiz Sérgio Moro para a pasta da Justiça, um expert em manipular garantias processuais para atingir determinados objetivos.

Para garantir um mínimo de coesão na base da pirâmide social, afetada pelo modelo econômico regressivo e concentrador de renda, o novo regime deverá atuar em duas frentes complementares.

A primeira tratará de calar a voz dos críticos, especialmente na mídia empresarial, que passará a exercer cada vez mais amiúde a autocensura com receio de perder fatias das verbas de publicidade governamentais, e nas Universidades por meio de intervenções diretas em detrimento da autonomia universitária e da perseguição a docentes, sob pretextos funcionais, a despeito da liberdade de cátedra. O anti-intelectualismo imanente a essas ações ainda cumpre a função de saciar os instintos e frustrações da malta ignara, pois o ódio é um combustível que não poderá faltar.

Um nem tão soft power será exercido, ainda, por meio do agendamento de pautas conservadoras nos costumes e reducionistas das liberdades civis, que se traduzirão em restrições ao público LGBT, na exaltação dos valores considerados da família tradicional, na submissão do papel da mulher aos “desígnios do lar”, no apelo à religiosidade na sua vertente mais tacanha e oportunista e redução do espaço público laico, o que alenta o conservadorismo atávico de parte considerável das classes populares e desvia a atenção da acentuada degradação de suas condições materiais.

Bolsonaro esquivou-se do debate sobre economia durante a campanha, refugiando-se no fogo cerrado que patrocinou às pautas identitárias, o que lhe manteve conectado à grande massa que decide uma eleição presidencial e sem que precisasse esclarecer quem seriam os beneficiários de suas políticas, se é que lhe contaram.

É provável que assim permaneça no governo, alienado para alienar e desviar a atenção do público do que é central nesse arranjo de poder, buscando sempre um inimigo da vez que servirá de bode expiatório para degradação do país.

O pinochetismo, sob a supervisão dos economistas da escola de Chicago, marcado por “um sistema de mercado apoiado no terror” e “caracterizado pela desenfreada concentração da propriedade e da renda” (T. Moulian), é o que mais se aproxima do que o país vivenciará, só que mais obscuro e tosco diante da indigência intelectual dos novos atores e da histórica violência que marca a ação do Estado contra o indivíduo no Brasil em períodos autoritários.

Em suma, haverá máxima liberdade para o capital e restrições tóxicas aos indivíduos, o que merecerá aplausos do “mercado”. A boa notícia é que, em algum momento, talvez nas próximas gerações, o país retomará o caminho da civilização, afinal Pinochet, Videla, Garrastazu Médici, Fulgêncio Batista, Franco, Salazar e Figueiredo não foram eternos. A má é que não se sabe quantas vidas serão desencaminhadas e desfeitas até lá.