
Ela não quer aparecer, nem que seu nome seja revelado. Tem medo de ser atacada por extremistas de direita e de ser retalhada no mercado de trabalho, como aconteceu recentemente. Uma campanha de solidariedade internacional foi mobilizada depois que o contrato de doutorado de “Ana” foi rompido pela Universidade Paris 7.
O motivo? Uma passagem pela justiça, em 2014. Naquele ano, foi condenada depois de ter atirado um copo de plástico com café que ela garante que estava frio num neonazista quando estudava no sul da França.
Ela explica que se tratava do mesmo grupo que a atacara um ano antes quando ela e um coletivo feminista defenderam o casamento gay numa manifestação que era contrária. “Eles chegaram em oito, com barras de ferro, cachorro, soco inglês, armas, e nos bateram. Fomos parar no hospital”.
Ana conta que, um ano depois, lá estavam eles novamente, desta vez dentro do sindicato estudantil, numa universidade no sul da França. Segundo ela, seu agressor empurrou sua colega. Foi aí que ela decidiu reagir. Mas não imaginava a dimensão que tomaria sua reação quatro anos depois.
Nesta entrevista, ela, que é peruana, detalha o que aconteceu. A entrevista ocorre em Saint-Denis, cidade pobre da periferia de Paris. Conversamos numa cafeteria próxima à Praça da Resistência e da Deportação.
O que aconteceu com seu contrato de doutorado na Universidade Paris 7?
Ao final do mestrado, minha orientadora me propôs que eu me candidatasse a um contrato de doutorado. Nunca havia me passado pela cabeça que eu conseguiria. Como ela insistiu, eu me candidatei. Passei por todas as etapas eliminatórias. Consegui o contrato. Estava super feliz. Alguns dias depois (do início das aulas), os recursos humanos me enviam um e-mail dizendo que queriam agendar uma reunião. Respondi: “por que vocês querem uma reunião, se eu já me inscrevi, já paguei a taxa de inscrição, já tenho minha carteirinha de estudante e assinei todos os papéis que vocês solicitaram?
Eu gostaria de saber por que vocês estão me convocando.” Eles não quiseram me dizer, o que é uma violação dos meus direitos laborais. Eu tenho direito de saber a razão pela qual estão me convocando e para que eu possa me defender. Tenho o direito de estar acompanhada de um representante sindical ou de alguém que eu queira. E esses direitos ninguém me deu.
Chegando lá, eles me disseram que romperiam meu contrato. Eu disse que ninguém havia me informado que era necessário ter histórico limpo, mas que eu podia esclarecer sem problema nenhum a situação e que contrataria uma advogada rapidamente para apagar o historico e pronto. Eu perguntei: “qual é o problema?” Eles responderam: “não contratamos ninguém com histórico judicial e ponto, não importa o que esteja escrito. Ninguém com histórico judicial pode trabalhar aqui”.
Por que você atirou o café frio?
O contexto era o das eleições sindicais e associativas da universidade onde eu estudava, no sul da França. Eu estava no sindicato. Tínhamos nossa mesinha, fazíamos café para os estudantes. Tínhamos os papéis para que as pessoas votassem no nosso sindicato. Estávamos com outro sindicato de esquerda. Todos estávamos unidos contra a associação de extrema direita, que se chama UNI, que tem uma ação antigreve nas universidades. Eles recrutam quando há greves, bloqueios aqueles que dizem “bloqueio não”, “greve não”. São muito antiesquerda.
Essa gente é muito próxima de grupos bastante violentos, identitários, neonazistas, da juventude do Front National (atual Rassemblement National). Eles iam acompanhados permanentemente da juventude du Front National e da League du Midi , um grupo identitário do sul da França, muito violento. Há pessoas desse grupo que foram condenadas à prisão por terem atacado a facadas. Isso aconteceu em 2014, o caso do café. Mas em 2013, no contexto da Manif pour Tous (manifestações contrárias ao casamento gay).
Com o apoio de companheiras LGBT e feministas, decidimos nos esconder num estacionamento. Esperamos a manifestação passar e nos levantamos com um cartaz gigante escrito “Pelo casamento para todos, igualdade de gênero”. Nada louco. Gritamos com um megafone. Foi ali que a League du Midi nos atacou. Eu já sabia que a League du Midi era violenta. Eles chegaram em oito, com barras de ferro, com um cachorro, soco inglês, com armas, e nos bateram. Fomos parar no hospital. E era o mesmo grupo que
estava no sindicato em 2014, no episódio do café. Eu já os conhecia. Gente muito racista, xenófoba, antissemita, sexista, tudo que a extrema direita sabe fazer muito bem. Tínhamos nossa mesa. Os grupos de extrema direita estavam na universidade. E, num dado momento, um membro da juventude do Front National empurra uma garota do outro sindicato porque ela estava colando um banner, algo assim. Nós nos dissemos: “não vamos ficar sem reação”. A única coisa que tínhamos eram copinhos de café que estavam na mesa. O café já estava frio, o resto, o que não terminaram de tomar. Não o tiramos da cafeteira quente. E além do mais, não fazia calor. O café estava frio. Então pegamos os copinhos de café frio e atiramos. Esse é o problema, é ridículo.
E eles te denunciaram à polícia?
Não foi o extremista de direita que nos denunciou à polícia, nem ninguém que foi atingido pelo café. Quem abriu o processo creio que foi a universidade, que já estava farta de nós, dos sindicalistas, dos movimentos de esquerda. Eu nunca havia sido processada. Meu histórico judicial estava vazio. Confiei na advogada que me defendeu, que, na realidade, creio que me defendeu muito mal porque nem sequer pediu que não escrevessem o fato no meu histórico judicial. Você tem o direito de pedir isso e quase sempre aceitam, porque você é estudante, cumpre uma série de requisitos… Tampouco, entramos com um recurso. Eu poderia ter entrado com um recurso, para dizer que a pena não era justa. Mas o que queria era resolver a situação o mais rápido possível porque não é nada agradável. Nunca pensei que teria um problema na minha vida e pensei “Pagarei minha multa. São só 315 euros. Pago e acabou o problema”.
E o que você pensa da verificação do histórico judicial por universidades?
Acredito que é uma política que prejudica as pessoas de classes sociais mais baixas. Não porque elas cometam mais crimes ou sejam mais delinquentes, mas porque tem menos recursos para poder se defender. No entanto, pessoas como Benalla (segurança pessoal de Macron flagrado agredindo um manifestante) não tem nenhum problema jurídico, mas merecem. A essas pessoas, ninguém processa, ninguém coloca um histórico judicial. Atualmente, muitas pessoas que trabalham no governo francês têm histórico judicial pior do que o meu, mas eles têm o direito de dirigir o país.
Acredito que é uma justiça burguesa, é uma justiça patriarcal, racista, e que prejudica sempre as mesmas pessoas. Eu acredito que a política de verificar o histórico judicial é importante em escolas, porque não se vai contratar alguém que foi condenado por pedofilia ou estupro num colégio onde há crianças. Isso me parece lógico. Ao mesmo tempo, acredito que é preciso olhar o que é que está escrito, em que contexto e porquê.
Se quisermos falar a linguagem que tanto se repete, a “reinserção”, a dívida com a sociedade, não são as palavras que eu gosto, mas eu cumpro. Paguei minha dívida. por que não me deixam em paz? Fiz um mestrado, fui aceita num concurso de doutorado para que possa estudar, para que mais para frente ter uma vida profissional boa e eles mesmos me impedem de ter a suposta reinserção que tanto me exigem; é totalmente contraditório. Exigir ficha judicial vazia numa universidade me parece um escândalo. Não entendo; eu continuo matriculada na universidade, porque eles não podem me expulsar. O que eu não tenho é o meu salário. Ou seja, estou trabalhando de graça. Estou fazendo minha pesquisa de graça. Se eu soubesse, não teria me inscrito. Eu me inscrevi porque faria meu trabalho. E agora, simplesmente, vou continuar pesquisando, mas de graça. Ao final, não fui embora da universidade, sigo trabalhando para a universidade.
Se supostamente sou alguém perigosa para eles, por que continuo nela? Isso é absurdo, sobretudo porque o diretor da escola de doutorado, a diretora do laboratório, numa reunião com a direção da universidade, tentaram negociar para que não rompessem meu contrato. Disseram: “se o problema é que ela ensine, o contrato de aulas é de 60 horas por ano. Rompam-no. Mas ela continua fazendo a pesquisa”. O contrato da pesquisa é a maioria do salário. Não é obrigatório considerar o histórico judicial. A universidade poderia me aceitar e seria totalmente legal.
O que está acontecendo nas universidades francesas?
Eu cheguei aqui em 2007. E desde que cheguei, percebi que nas universidades francesas podia-se fazer mobilizações e lançar um movimento estudantil a nível nacional. A reforma da autonomização das universidades, que começou em 2007, tornou mais difícil fazer um movimento estudantil nacional. A repressão é cada vez mais forte. Antes, as universidades protegiam seus estudantes de situações com a extrema direita, por exemplo. Não todas. Mas existia a possibilidade de que sua universidade te protegesse. No entanto, agora sua universidade te reprime por se opor a pessoas de extrema direita que estão na sua universidade e nem sequer são estudantes dela. Os identitários, os jovens do Front National nem sequer eram estudantes. Não tinham porque estarem no campus.
Você acredita que o fascismo está ganhando as universidades francesas?
Pelo menos está mais banalizado. Um artigo do Politis sobre meu caso conta justamente como antes as universidades proteger seus estudantes. Houve um homem numa mobilização que foi preso com uma maleta de explosivos numa luta antifascista, acredito. Para protegê-lo, Paris 7, a mesma universidade que está me demitindo por ter participado de uma manifestação antifascista, deu-lhe um contrato muito mais estável, de titular, para que isso lhe ajudasse a sair da prisão e continuar ensinando. Isso já não se veria numa universidade hoje. Infelizmente, creio que não apenas nas universidades, mas na sociedade o fascismo está cada vez mais banalizado e isso assusta bastante.
Como você vê o aumento da taxa de inscrição para estrangeiros e a seleção de estudantes no acesso à graduação?
Eu acho totalmente xenófobo, racista. Essa política, que também é super classista, porque se você não tem dinheiro, você não se inscreve, casa-se com políticas migratórias. Para mim, parecem políticas de extrema direita, do Front National, que já não se chama Front National …
Rassemblement National.
Exato, o RN. São políticas desse estilo. Isso me surpreendeu. Mas Macron é obviamente de direita, obviamente vai aplicar políticas xenófobas, vimos muito bem como tratam os imigrantes aqui na França.
Como os tratam?
Com violência. Roubam suas cobertas enquanto dormem, impedem as associações, que lhes dão comida de alimentá-los, batem neles. Eles têm barris de lata que usam para colocar fogo (dentro) e se aquecer. Roubam deles. Lançam-nos à rua. Quantos edifícios vazios há nessa cidade, ginásios e uma série de lugares onde poderiam colocar essas pessoas, mas preferem deixá-los nas ruas, morrendo de frio, mesmo que sejam menores de idade, crianças? Da na mesma para eles. Nem na rua os deixam dormir em paz. Tratam-lhes com desprezo.
Mas Bolsonaro disse que os imigrantes querem impor na França os privilégios que tinham em seus país de origem. Concorda?
De jeito nenhum (risos). Que privilégios? O privilégio de viver em países onde são perseguidos? De países onde estão escapando da guerra, da violência de gênero? Muitos migrantes são trans, da comunidade LGBT, e feministas. Quais são seus privilégios? Que os matem em seus países? O risco de morte é o privilégio do qual fala Bolsonaro, que querem restaurar na França? Me parece ridículo. Eles gostariam de ficar em seus países, com suas famílias, com sua gente, com seus costumes. De todos os modos, eu penso que as fronteiras não têm sentido. Todo tipo de fronteira deveria ser abolida.
Ele afirma que os franceses estão sofrendo, que não suportam mais.
Quem está sofrendo são os racistas, os xenófobos (risos). Mas não me importa que eles sofram. E como Bolsonaro explica a quantidade de associações que há, que lhes dão de comer (aos migrantes), que arrecadam cobertores? Aqui há solidariedade também. Há gente de merda, mas também há bastante solidariedade. E isso muita gente não vê, não lhes importa, como os sem-teto, uma população totalmente invisibilizada, mas também há uma rede de solidariedade que se organiza. E é necessário olhar para isso também, a quantidade de militantes que há anos estão lutando para que os migrantes possam ter direitos. Não acredito que os franceses estejam sofrendo porque os imigrantes estão aqui (risos). Quem está sofrendo são eles, os migrantes.
O que você pensa sobre os coletes amarelos?
Um movimento muito interessante. Faz anos que não havia na França um movimento ofensivo. Em geral, os movimentos eram defensivos. Mas este ataca. Pede e se afirma. No começo, não me atraía porque estava focado na questão do preço do combustível. Pareciam-me reivindicações de uma classe social, digamos, de classe média, pequenos patrões, pequenos comerciantes. Eu pensei: “não é tão interessante”. Rapidamente, começou a se transformar num movimento contra Macron, um movimento que pede um aumento do salário mínimo.
Não se pode analisar esse movimento de modo simples porque é muito recente e também porque é um movimento de várias propostas diferentes. Esse é o problema. Para mim, ele parece interessante por pedir que Macron renuncie, Castaner (ministro do Interior) renuncie, direitos laborais… E me parece interessante que haja nele muitas pessoas que não tinham o costume de se mobilizar, que vêm de zonas rurais. Quantas pessoas não estão vindo a Paris pela primeira vez para manifestar-se? Mas há muitas críticas a se fazer.
Ele continua sendo um movimento interclassista (que mistura classes sociais), há pessoas também da extrema direita bastante mobilizada desde o início, há gente menos radical, que querem referendos, o que a mim não me parece tão interessante pois com referendos poderiam aprovar medidas bastante racistas. Interessantes são os que estão lutando pela questão da previdência, do desemprego, todos os precários, são a maioria precários que estão saindo às ruas.
Por enquanto é difícil fazer um diagnóstico do movimento. Ele varia muito dependendo da cidade em que você o vê, o momento… De todo modo, acredito que a esquerda deve manifestar solidariedade a esse movimento, em favor das pessoas que estão sendo reprimidas, de maneira muito forte, com todas as mutilações, que morreram, que sofreram condenações injustas, que são presas por coisas muito injustas, que está suportando a justiça burguesa que está agindo de maneira muito dura. Nós, com meu coletivo feminista, Femmes en Lutte du 93 , temos estado presentes nas manifestações com os coletes
amarelos, levando uma mensagem feminista, dizendo que, as mulheres, estamos na primeira linha da violência, de todas as violências sociais, mas temos que estar na primeira linha de todas as resistências. Para nós, é muito importante levar uma mensagem feminista dentro dos coletes amarelos. Creio que o trabalho da esquerda é ir, dar análises e mostrar em atos e palavras o que é que queremos mudar, sobretudo do ponto de vista feminista e revolucionário.

Não te parece suspeito que o juiz que condenou Lula agora seja ministro da justiça de Bolsonaro?
Obviamente é suspeito (risos). Por um lado, dá raiva porque me pergunto como pode ser possível tanta asquerosidade política. Por outro lado, já nem me surpreende porque a corrupção é tão forte no nosso continente. O que está acontecendo no Peru é como se fôssemos governados por máfias e não por partidos políticos. São máfias.
O que você pensa sobre a eleição de Bolsonaro?
Deprimente. Não conheço suficientemente o Brasil e seu contexto político para poder fazer uma análise pertinente. Mas (a eleição) me parece uma tragédia para o Brasil e para toda a América do Sul porque vários países estão passando para governos de direita ou de extrema direita, ou de direita bastante dura. No caso do Brasil, é uma extrema direita total. A nível mais geral, é bastante interessante varios países da América Latina passem à direita e que ao mesmo tempo as lutas cada vez ganham mais força, as lutas feministas, as lutas indígenas, pelos trabalhadores e trabalhadoras.
Está-se criando uma divisão bastante forte, tanto de repressão como de luta. O caso de Bolsonaro, depois do assassinato de Marielle Franco, é um insulto que uma pessoa como essa chegue ao poder. Parece-me um perigo para meus companheiros brasileiros e brasileiras. Tenho amigas brasileiras lésbicas que não querem voltar, que querem ficar aqui de qualquer jeito porque suas vidas estão em perigo.
Mal chegou ao governo, uma de suas primeiras medidas foi contra as populações indígenas e LGBT. Isso mostra como vai ser esse governo, que mal começou e já está reprimindo esse tipo de população. Isso é uma tragédia para toda a América Latina. Mas assim como as mulheres se mobilizaram bastante contra sua eleição, elas vão seguir se mobilizando, a comunidade LGBT, os sindicatos, os operários, as operárias.
Creio que o Brasil vai passar por momentos difíceis, mas de luta forte e de unidade e assim espero. Foi o que se viu durante a eleição a criação de um movimento de contestação de todos os modos. O que pudermos fazer, faremos, em solidariedade aos latino-americanos, como companheiras feministas, porque nos interessamos pelas lutas da classe operária e pelas lutas antirracismo e antihomofobia.
Ele defende um projeto que se chama Escola sem Partido, segundo o qual os estudantes, os pais, as mães são convidados a denunciar os professores que considerarem estar fazendo doutrinação. O que você pensa a respeito?
Impressionante. Creio que são medidas fascistas. Está totalmente contra a educação em si, o que deveria ser a educação. Obviamente a educação burguesa, dentro do sistema capitalista, já é bastante problemática e a ela já podem ser feitas muitas críticas. Mas o fato de nem sequer dar liberdade ao professor de se expressar é um controle do que ele tem no cérebro. Não se trata apenas de um professor que não pode dizer o que pensa, mas também de alunos que terão de se confrontar com um robô. Parece-me uma repressão muito forte para os professores, mas também para os que estão do outro lado. O que eles querem é embrutecer a população para que as pessoas não pensem para que as pessoas não possam ter crítica desde a infância. Isso já fazem. Por exemplo, a discriminação homofóbica, de gênero em geral, inculcam desde que se é criança. Mas além disso, querem que seja ainda pior.
Sobre o Peru, o ex-presidente Alan Garcia teve seu pedido de asilo negado por Tabaré Vázquez. Houve eleições muito disputadas por Keiko Fujimori e um presidente eleito que deixou o poder um ano depois. O que acontece com a política do Peru?
Boa pergunta, uma questão muito complicada. A política no Peru nunca foi estável, uma política como as democracias burguesas dos países do norte, que conseguiram ter uma estabilidade mais forte. Não que seja o ideal as democracias dos países do norte. Mas, na França, o direito trabalhista existe. Estão destruindo-o, não é suficientemente bom, mas jamais existiu no Peru. A política no Peru é muito frágil. Ainda está muito influenciada pela colonização, pelo fato de ser uma ex-colônia, pelo racismo. Não há uma política verdadeira. Ela é mais uma questão de máfias. Não há muitos partidos históricos. Cada um abre seu partido a cada eleição para ver se consegue ganhar dinheiro com um cargo.
O Peru está muito traumatizado pelos 20 anos de conflito armado interno dos anos 1980 até os anos 2000, durante o qual houve as guerrilhas como o Sendero Luminoso e o terrorismo de estado, seja com Alan Garcia, seja com Fujimori. Esse trauma criou um medo da esquerda, uma assimilação automática de que quando você é de esquerda, você é terrorista. Creio que isso está mudando um pouco nos últimos anos, mas ainda é muito forte. Não houve justiça para as vítimas de violações de direitos humanos. Fala-se em reconciliação. Como se pode reconciliar um país onde se anistia ao ditador Alberto Fujimori às vésperas de Natal? Que a cada segundo turno Keiko Fujimori esteja prestes a ganhar, suportar a ideia de que possa-se voltar ao fujimorismo? O fujimorismo é uma máfia, o crime organizado. São assassinos.
Não se pode falar em partido político, mas numa máfia que ainda está controlando o país tentando ganhar a maior quantidade de dinheiro possível com seus negócios ilegais, com seus laços com o narcotráfico. São criminosos. O fujimorismo é a pior peste. Alan Garcia também. São uma gangrena da qual temos que nos livrar. Felizmente a juventude atual está bastante mobilizada contra o fujimorismo, a questão também das esterilizações forçadas no Peru. Houve em torno de 300 mil mulheres esterilizadas durante a época de Fujimori, entre 1995 e 2000 e nunca houve justiça para essas mulheres.
No início, milhares delas denunciaram essas esterilizações como forçadas. O problema é que as cifras de quantas foram forçadas ou não é muito complicada de se obter. Não se pode dizer que todas foram forçadas, mas a maioria foi de mulheres indígenas, falantes do quechua (língua indígena), que nem sequer entendiam espanhol quando estavam levando-as para o centro médico esterilizá-las, e pessoas de classes baixas, de zonas rurais, homens também, em torno de 22 mil. Agora esse tema está vindo a tona e as pessoas já não se atrevem a dizer que é mentira. Durante muito tempo, as pessoas negavam as esterilizações.
Atualmente no poder no Brasil, defende-se a ideia de que durante a ditadura não havia violência, um período de eliminação do perigo do comunismo. Há paralelos com o fujimorismo?
Sim. A ditadura de Fujimori, sob o pretexto do terrorismo, atacou todos os sindicatos, todas as lutas, a todas as iniciativas de oposição contra a ditadura. Então se alguém se opunha à ditadura, era “terrorista”. Quando ele começou seu mandato, uma das primeiras coisas que fez foi aniquilar o Direito Trabalhista. E é importante observar que essa questão das esterilizações forçadas e do terrorismo está atrelada à aniquilação dos direitos laborais, à obrigação das pessoas de ter empregos precários, uma crise econômica muito forte. Há interesses econômicos por trás. A repressão foi muito forte nas zonas rurais, nas populações indígenas, seja da Amazônia ou dos Andes.
Em Lima, por muitos anos, ninguém se importava quando era no interior do país. Quando chegava à capital, ai as pessoas acordavam, “basta! Tem que se fazer algo”. Isso mostra também o desprezo que tinha o governo e a burguesia peruana em relação aos indígenas, que são também no Brasil os primeiros a estar em perigo no início do mandato de Bolsonaro.
Não se deve esquecer que durante a ditadura no Peru houve pessoas torturadas, cremadas, desaparecimentos, um terrorismo de Estado muito forte, o estupro de mulheres em geral, sobretudo indígenas, por parte do Exército. Houve grupos de milícias armadas,
como o grupo Colina, que executavam até crianças sob a desculpa do terrorismo e da luta anticomunista para matar qualquer forma de contestação. Talvez é um risco que agora vai aparecer com Bolsonaro; qualquer um que abrir a boca, que quiser protestar, vai receber esse tipo de repressão, porque vocês agora estão num contexto de ditadura fascista.
Qual é o tema da sua pesquisa?
Eu pesquiso sobre as esterilizações forçadas no Peru durante a época de Fujimori, sob um ponto de vista feminista, materialista e crítico do neoliberalismo, que chegou sobretudo com Fujimori. Ainda não tive tempo, com todo esse problema, de definir o projeto. Mas vou pesquisar as esterilizações de mulheres indígenas no Peru com o objetivo de mostrar como são políticas neoliberais, patriarcais, misóginas, racistas, coloniais.
Quais são seus planos?
Por enquanto, ganhar esse processo contra a universidade. Ganhar o processo não vai fazer apenas recuperar meu contrato, mas também mostrar que a universidade não tem direito nunca mais de fazer isso com ninguém. Isso vai servir para pessoas que poderão ter o mesmo problema que eu algum dia. E que haja um pouco de justiça. Meus planos são de continuar lutando, fazer minha pesquisa e lutando com minhas companheiras feministas. Continuar lutando aqui, no Peru e onde estiver. Enquanto há pessoas surdas e obstinadas, que não querem uma militante no interior da universidade, vamos continuar o processo. Eles não vão tirar a minha vontade de continuar militando.
O que você vê no mundo depois ascensão da extrema direita?
Espero uma revolução. Imagino que vai haver uma crise econômica muito forte e uma fascistização generalizada dos estados capitalistas. Isso vai gerar muita luta. Vamos ver quem vai ganhar. Espero que sejamos nós.