Bolsonaro provocou “crise épica de saúde pública”, diz reportagem da revista científica Nature

Atualizado em 28 de abril de 2021 às 11:03

Publicado na Nature

Bolsonaro provoca aglomeração em Tianguá (CE) (Foto: José Dias/PR)

Por Luke Taylor

Mais de um ano depois que o Brasil detectou seu primeiro caso de covid-19, o país está enfrentando sua fase mais obscura da pandemia. Os pesquisadores estão arrasados com o aumento recente de casos e dizem que o fracasso do governo em seguir as orientações baseadas na ciência para responder à pandemia tornou a crise muito pior.

Eles acrescentam que a administração do presidente Jair Bolsonaro minou publicamente a ciência ao se recusar a implementar bloqueios nacionais de proteção e espalhar desinformação.

“Ser cientista no Brasil é muito triste e frustrante”, diz Jesem Orellana, epidemiologista do centro da Fundação Oswaldo Cruz em Manaus.

Um aumento nas infecções por coronavírus levou muitas das unidades de terapia intensiva do Brasil à beira do colapso. E o número de mortes diárias e mensais atingiu níveis recordes. Desde o início da pandemia, mais de 389.000 pessoas morreram no Brasil da doença causada pelo SARS-CoV-2, o que representa 13% da mortalidade mundial por COVID-19 – embora o país tenha menos de 3% da população global.

Bolsonaro, uma figura polarizadora que foi comparada ao ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, vem contradizendo a opinião científica desde o início da pandemia, quando chamou a covid-19 de “gripezinha”. No final do ano passado, ele também deu a entender que as vacinas podem ser perigosas, dizendo: “Se você se transformar em um jacaré, o problema é seu”.

Os pesquisadores brasileiros estavam bem cientes da postura anticientífica de Bolsonaro frente à pandemia. Depois de assumir o cargo em 2019, ele cortou fundos para as universidades brasileiras e seus ministérios de ciência e educação. Ele também acusou o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) de falsificar dados de satélite que mostravam desmatamento acelerado na Amazônia. Mesmo assim, a forma como lidou com a crise da covid-19 foi um choque, diz Natalia Pasternak, microbiologista e presidente do Instituto Questão de Ciência, de São Paulo. “Eu não acho que qualquer um de nós poderia prever que seria tão ruim.”

A administração de Bolsonaro não respondeu a um pedido de comentário da equipe de notícias da Nature.

Ferramentas testadas e comprovadas

O governo de Bolsonaro foi contra o conselho científico várias vezes durante a pandemia, incluindo na promoção de curas da covid-19 não comprovadas. Mas o mais caro de seus erros, diz Orellana, foi ignorar as estratégias de contenção de pandemia testadas e comprovadas.

Apesar da pesquisa mostrar que as máscaras podem reduzir as chances de transmitir e pegar SARS-CoV-2, Bolsonaro enfraqueceu um decreto federal que exigia o uso de máscaras em julho passado. Ele também se recusou a usar uma máscara facial, mesmo após o teste positivo para COVID-19, dizendo que são para “maricas”. E ele se recusou a emitir ordens nacionais para fechar negócios não essenciais durante a pandemia, dizendo que os bloqueios seriam economicamente prejudiciais, especialmente para os pobres, e rotulando os governadores que os aplicaram como “tiranos”.

“Infelizmente, no século XXI, estamos falhando em nível nacional para incorporar ferramentas antigas e eficazes que poderiam salvar dezenas de milhares de vidas”, diz Orellana.

Um estudo recente que acompanhou surtos de covid-19 em todo o Brasil do final de fevereiro ao início de outubro descobriu que as regiões que implementam medidas rígidas, como bloqueios e decretos sobre uso de máscaras, tiveram menos mortes per capita do que outras regiões comparáveis.

“Na ausência de uma ação coordenada em nível federal, o que vimos foram respostas diferentes em nível local, que não foram suficientes para evitar o alto número de mortos”, diz Márcia Castro, presidente do Department of Global Health and Population da Universidade Harvard e uma das autoras do estudo.

“O governo tem negado a pandemia”, diz Gabriela Lotta, que estuda administração pública e governo na Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. “Nega que seja grave, nega que precise de intervenção e nega as medidas necessárias defendidas pela ciência para enfrentá-lo”.

Vírus em fuga

Embora os cientistas reconheçam que o atual surto de coronavírus no Brasil se deve em parte à disseminação de variantes do coronavírus – em particular uma versão altamente transmissível do vírus chamada P.1 -, eles dizem que a inação do governo permitiu que a proliferação acontecesse.

A variante P.1 provavelmente surgiu em Manaus em novembro de 2020. Em janeiro, depois que a cidade foi invadida por infecções da P.1, Orellana pleiteou em reunião pública da Corte Interamericana de Direitos Humanos para políticos para barrar viagens de ida e vinda da Amazônia.

Mas os pacientes infectados com a cepa e seus familiares foram transportados de avião por todo o país para tratamento, e os aeroportos e terminais de ônibus permaneceram abertos. Em março, os cientistas detectaram a P.1 como a variante dominante em seis dos oito estados brasileiros que estudaram.

As nações vizinhas tentaram se desligar do Brasil, mas muitas agora estão vendo mais casos de P.1 dentro de suas fronteiras. Por exemplo, 40% dos casos de covid-19 em Lima são agora infecções P.1.

Mauricio Nogueira, virologista da faculdade de medicina da FAMERP em São José do Rio Preto, diz que os pesquisadores no Brasil que estudam as variantes do SARS-CoV-2 são incapazes de estudá-las adequadamente porque o Bolsonaro cortou fundos para a ciência de forma severa. “Não temos recursos para fazer pesquisas básicas, como entender como as variantes são mais ou menos virulentas”, diz ele. “Não temos equipamento de laboratório ou reagentes para isso.”

À medida que as variantes continuam a evoluir – atualmente há cerca de 90 circulando no Brasil – essa incapacidade de investigá-las adequadamente ameaça a resposta e recuperação do país à pandemia. Alguns estudos sugerem que as variantes podem diminuir a proteção que as vacinas oferecem.

Mensagens públicas

Cientistas brasileiros dizem que a promoção da desinformação pelo governo Bolsonaro piorou as coisas. Alguns, incluindo Orellana e Pasternak, estão cada vez mais deixando de lado suas pesquisas para fazer aparições na televisão nas quais promovem práticas como o distanciamento social.

“É muito difícil implementar medidas preventivas quando a desinformação vem diretamente do governo federal”, diz Pasternak.

A política brasileira deixou os cientistas “desamparados”, diz Nogueira. “Temos as ferramentas ou pelo menos a capacidade de ajudar o país, mas estamos sendo ignorados e não apoiados pelos líderes do país.”

Os esforços para conter o aumento atual do Brasil não foram ajudados pelo lançamento lento da vacina no país, diz Ricardo Gazzinelli, presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia. Bolsonaro questionou a “pressa” para obter vacinas no ano passado porque pensava que a pandemia estava chegando ao fim.

Apenas cerca de um em cada dez brasileiros recebeu a vacina até o momento. Se a implantação do imunizante não aumentar e as pessoas continuarem a ignorar a orientação sobre a máscara, as mortes por covid-19 no Brasil podem ultrapassar meio milhão em meados de junho, de acordo com modelos desenvolvidos pelo Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde da Universidade de Washington em Seattle.

“Tudo o que podemos fazer agora é nos preparar para o impacto”, diz Nogueira.