Bolsonaro quer dar à polícia o que ela já tem: licença para matar. Por Mauro Donato

Atualizado em 2 de setembro de 2018 às 6:48
Bolsonaro fez uma criança imitar uma arma com as mãos

Na sabatina do JN, Jair Bolsonaro repetiu seu misto de ‘raciocínio’ com proposta de governo ao afirmar que “um policial matar 10, 15 ou 20 bandidos com 10 ou 30 tiros cada um, deve ser condecorado e não processado”. O candidato diz isso não é de hoje.

Declarou em outubro do ano passado quando estava nos EUA (“Vou dar carta branca pro policial matar”); Também em dezembro, em um discurso em Manaus, quando declarou que iria lutar pelo chamado ‘excludente de ilicitude’ (que na prática é uma proposta para que o policial responda por danos que provoque com uso de armas, mas não seja punido).

No entanto, ninguém deveria ficar estarrecido ou alarmado com essa retórica. A polícia já atua assim faz tempo.

Nesta semana, o Ministério Público de SP denunciou dois policiais militares por homicídio do menino Ítalo Ferreira de Jesus Siqueira, 10 anos, morto com um tiro na cabeça enquanto dirigia um carro roubado. Um total de cinco agentes foram também denunciados por ‘fraude processual’. Se a Justiça aceitar a denúncia, os policiais tornam-se réus e podem ir a julgamento, um alento aos mais otimistas.

No mesmo dia, porém, um julgamento estava ocorrendo e ficou fora dos holofotes da mídia. No Fórum de São Bernardo do Campo (SP), foi julgado o major da PM, Herbert Saavedra, que juntamente com o soldado Alberto Fernandes de Campos e o cabo Edson Jesus Sayas Junior, são acusados pelos assassinatos de dois adolescentes: Douglas Silva e Felipe Macedo Pontes (ambos com 17 anos), ocorridos no dia 30 de novembro de 2011.

Como sói acontecer, a versão dos PMs era a de que os adolescentes morreram ‘em confronto’. O boletim de ocorrência – registrado pelos policiais 6 horas depois dos fatos – descrevia como ‘resistência seguida de morte’. Contudo, testemunhas ouvidas na época tanto por entidades de direitos humanos, como pela Ouvidoria de Polícia e também pela Polícia Civil, afirmaram que os jovens foram executados sem esboçarem qualquer tipo de reação.

Uma testemunha afirmou ter visto os PMs forjando provas no local do crime ao pegarem armas de fogo dentro da viatura e colocando-as nas mãos dos jovens. Uma outra, um frentista do posto de gasolina que fica em frente ao local, disse que os jovens saíram da moto com as mãos na cabeça e desarmados, e que então os policiais fizeram vários disparos.

Passado um tempo, os policiais disseram que os jovens eram suspeitos de um roubo no bairro.

“Esse roubo jamais ocorreu, já que nenhuma ocorrência do tipo foi registrada na Delegacia da área, assim como nenhuma vítima ou testemunha do suposto crime foi localizada pela própria polícia”, afirmou o advogado Ariel de Castro Alves, membro do Condepe (Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa Humana). O advogado declara ver “fortes indícios de que os adolescentes foram executados pelos PMs, já que conforme os laudos do IML, Douglas levou 5 tiros e Felipe recebeu 4 disparos”.

Ainda segundo Ariel, as investigações do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) demonstraram que um dos jovens morreu no local, mas que o outro morreu a caminho do hospital, após, inclusive, ter dito a uma testemunha que temia ser morto no trajeto.

Os adolescentes trabalhavam e estudavam (estavam saindo da escola naquela hora), não tinham antecedentes de envolvimento com atos infracionais na Vara da Infância e Juventude, e o laudo do Instituto de Criminalística não constatou resíduos de pólvora nas mãos das vítimas.

Ariel de Castro Alves chegou a pedir, em 2012 , a federalização das investigações pois os autos do inquérito ficaram por até 6 meses desaparecidos (após o pedido de Ariel, foram ‘encontrados’ num fórum de outra cidade).

Pois bem, leitores otimistas, o resultado do julgamento de quarta-feira foi que o major foi absolvido pelo júri presidido pelo juiz Anderson Fabrício da Cruz. Entenderam a ação como ‘legítima defesa’. Os dois PMs nem mesmo foram julgados porque recorreram da decisão de irem a júri e o Tribunal de Justiça ainda não julgou os recursos.

Nesse ambiente maniqueísta que já vivemos, alguém conseguiria piorá-lo ainda mais? A polícia já anda praticando tortura a céu aberto, como foi visto em vídeo que circula na internet, de um caso no Ceará. Policiais colocam um pano no rosto de um jovem e jogam água por cima, numa prática de tortura conhecida como afogamento simulado. Era um menino que não aparentava ser maior de idade.

Bolsonaro estimula criancinhas a fazer o gesto de quem está a atirar, já chamou recentemente os defensores de Direitos Humanos de ‘bandidada’… O Brasil já lidera o número de mortes por arma de fogo no mundo segundo o estudo Global Mortality from firearms divulgado esta semana pelo Institute for Health Metrics and Evaluation… Dá para piorar?

Sim. Nada é tão ruim que não possa piorar.

Aliás, tem sido comum receber críticas quando se fala de Bolsonaro, quando se dá audiência ao ‘projetinho de Hitlerzinho tropical’, como definiu Ciro Gomes.

A melhor resposta para essas críticas está num texto da psicóloga e psicanalista Helenice Rocha, professora na Universidade Guarulhos, intitulado “Por que nós, psicólogos, temos a obrigação de falar sobre Bolsonaro?”, publicado no blog Cartas Proféticas:

Bolsonaro não é um meme, não é um personagem. Ele é um homem a quem 20% dos eleitores já declararam sua intenção de voto. Bolsonaro não é uma figura folclórica. Ele é um sujeito destemperado emocionalmente, atrasado intelectualmente e talvez pior do que isto, um sujeito mal intencionado e mentiroso (…) Não combater esta candidatura é uma falha grave por parte dos psicólogos. Falha ética. Grave. Aos psicólogos que se omitem diante deste descalabro, sugiro que repensem. A nossa profissão não sobrevive ao fascismo. No limite, sob o governo deste ser abjeto, ela sobreviverá amputada, limitada e não de forma plena e criativa como desejamos e precisamos que ela seja. Neste caso, se omitir será tão grave quanto apoiar. E este silêncio mortífero nos condenará assim como todos aqueles a quem temos obrigação de cuidar, ao descaso e à violência.”

É isso. Ignorar o capitão não fará com que ele desapareça no horizonte. É preciso falar de Bolsonaro e suas ‘ideias’ constantemente.

Jornalista, escritor e fotógrafo nascido em São Paulo.