Bolsonaro reedita perseguição da ditadura à arte e à cultura

Atualizado em 19 de julho de 2019 às 19:26
Bolsonaro aponta o ditador Médici (Imagem: reprodução arquivo pessoal)

PUBLICADO NA RBA

POR GABRIEL VALERY

O presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro (PSL), segue em sua guerra ideológica.

Na política, na cultura e nos costumes, o governo, que em 200 dias ainda não apresentou nenhuma proposta para que o a economia funcione e o país cresça, segue seu intento de calar opositores na caneta. “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine”, disse Bolsonaro sobre a Agência Nacional do Cinema, ao anunciar a intenção de levar o órgão com sede no Rio de Janeiro para Brasília, sob comando da Casa Civil. Ontem (18), o Conselho Superior de Cinema já passou do Ministério da Cidadania para a pasta de Onix Lorenzoni.

“Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos costumes; CONSIDERANDO que essa norma visa a proteger a instituição da família, preservar-lhe os valores éticos e assegurar a formação sadia e digna da mocidade.” O argumento que parece conduzir o atual governo é um trecho do decreto de censura da ditadura civil-militar (1964-1985) assinado em 1970 pelo general Emílio Garrastazu Médici, pouco mais de um ano após a edição do Ato Institucional (AI-5), que suspendeu direitos civis e garantias constitucionais.

O país está exposto à censura. Sobre quais os “filtros” que deseja impor à Ancine, Bolsonaro diz: “Culturais, pô! Temos tantos heróis no Brasil e não se fala desses heróis (…) Temos que dar valor a essas pessoas”, disse, sem explicitar quais seriam seus “heróis” – embora já tenha manifestado fervor pelo torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Mérito?

A Ancine é responsável pelo fomento, regulação e fiscalização do mercado audiovisual brasileiro. Desde 2001, a agência vem criando mecanismos impessoais para a escolha de projetos, por meio de leis de incentivo e editais, que surtiram um resultado notável. Essa autêntica “meritocracia” surgida no setor incomoda Bolsonaro.

É um processo de construção contínuo. Pontos são reformulados de forma constante, ainda há o que ser aprimorado, de acordo com os próprios produtores, e esse caminho estava sendo trilhado. Para citar apenas um exemplo, neste ano, duas produções nacionais ganharam dois dos mais importantes prêmios do cinema mundial. Bacurau, de Kleber Mendonça Filho levou o Prêmio do Juri em Cannes e A Vida Secreta de Eurídice Gusmão, de Karim Aïnouz, levou o prêmio Um Certo Olhar, no mesmo festival.

“Um dia depois de quatro filmes brasileiros serem selecionados para o Festival de Locarno, em um ano notável para o cinema brasileiro, com forte presença em Sundance, Rotterdam, Berlim e Cannes, o presidente anunciou planos para desmontar a agência do cinema porque ele não está feliz com os filmes que estão sendo produzidos”, resumiu o cineasta Mendonça Filho.

Outro cineasta, Fernando Fraiha, explica que o modelo da Ancine é baseado em uma “curadoria técnica” e não entra no mérito do conteúdo, para não favorecer algum viés ou ideologia. “É o mercado que escolhe os projetos através das afinidades entre investidores e filme (…) Pra quem se diz liberal, falar que o estado vai ditar oq pode ou não ser produzido, não é nem uma contradição. É uma heresia”, postou em uma rede social.

Não gostei: censura

Um dos pivôs escolhido por Bolsonaro foi a série #MeChamaDeBruna, que renovou para sua terceira temporada. A produção, que ganhou público e crítica, é considerada “imoral” pelo presidente, que não poupou ataques em entrevista coletiva. “Não pode é dinheiro público ser usado para filme pornográfico, só isso. Não posso admitir que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinha. Não dá.” A produção conta a história de uma garota de programa e sua saga até deixar tal função.

Tiro no pé

A tentativa de Bolsonaro de esganar a cultura nacional fere não apenas a identidade do povo. Atinge diretamente o turismo e, principalmente, emprego e renda na própria área. De acordo com dados da Ancine, o audiovisual movimenta no país mais de R$ 24,5 bilhões por ano. Desde o início da série histórica da Ancine, em 2007, os números de emprego e retorno aumentam exponencialmente.

De acordo com números do antigo Ministério da Cultura (extinto por Bolsonaro), o setor movimentava 4% do PIB até o agravamento de seu desmonte, neste ano. O Banco Mundial calcula que a área seja responsável por 7% do PIB do planeta. O audiovisual cresceu expressivamente no Brasil na década passada. De 2009 para 2014, os investimentos federais foram de R$ 149,1 milhões para R$ 356 milhões. No mesmo período, o público nos cinemas cresceu 53%. São dados do Atlas Econômico da Cultura Brasileira, divulgados em 2017.

Fraiha se mostrou abalado com as ações de Bolsonaro. “Com ações como essa, ele pode até mirar no audiovisual, mas vai acertar no país. Vai impactar no PIB, desemprego e superavit primário. Mas todas essas questões pragmáticas são ignoradas pelo viés ideológico do governo. Que o Bolsonaro é contra a cultura, principalmente o audiovisual, todo mundo já sabe. Mas ele falar que ‘não faz sentido fazer filmes como bruna surfistinha com recursos da ancine’ ele tá sendo contra um projeto que deu lucro pro estado. Isso eu não sabia que ele era contra.”

Portanto, os ataques ao setor atingem não apenas a soberania, identidade e formação do povo: atingem a economia.