Bolsonaro transformou a imprensa em comentarista do bolsonarismo. Por Moisés Mendes

Atualizado em 4 de outubro de 2020 às 8:32
Cínico e desarticulado, Bolsonaro se recusa a dar coletiva porque é “acusado de agredir a imprensa”. Foto: Reprodução/Twitter

Publicado originalmente no blog do autor

Somos todos – jornalistas, analistas políticos e palpiteiros de redes sociais – comentaristas dos desatinos e das bobagens de Bolsonaro e dos que estão no seu entorno.

Os jornalistas passam o dia de tocaia para pegar uma gafe, uma fala, uma crueldade de Bolsonaro.

Há poucos dias, Bolsonaro assinou uma lei de proteção aos animais. A imagem do evento foi a cena em que ele não conseguia pegar um cachorro e uma caneta ao mesmo tempo.

No dia seguinte, Bolsonaro disse em São José do Egito, em Pernambuco:

“Vamos caprichar para escolher prefeito e vereador, vamos escolher gente que tenha Deus no coração, que tenha na alma patriotismo e queira de verdade o bem do próximo. Deus, pátria e família”.

E todos saíram a comentar que esse é o lema do integralismo. Bolsonaro seria um neointegralista. Mesmo que saibam que Bolsonaro é incapaz de saber o que foi o integralismo.

Bolsonaro é o fascista que não tem base teórica de nada, muito menos de gestos e ações que sustentam o próprio fascismo. Bolsonaro não tem como saber quem foi Plínio Salgado.

Mas alguém disse a Bolsonaro que ele deveria dizer uma frase de inspiração integralista, para confundir a imprensa, e ele decorou a frase que remete ao fascismo nacional do século 20.

Amanhã, Bolsonaro soltará mais uma besteira e todos (inclusive eu) estarão a postos para comentar a bobagem de Bolsonaro. O jornalismo dá sentido e emoldura o que Bolsonaro diz.

Até os políticos são comentaristas das atitudes de Bolsonaro. Nunca os políticos de esquerda comentaram tanto as falas e os atos de alguém da direita como acontece agora. Apenas comentam, há pouco o que fazer.

Usamos todos os adjetivos, que apenas se repetem. Todas as palavras depreciativas, todas frases que projetam ordens e desejos morais. Tudo o que expressa a repulsa por Bolsonaro já foi dito.

Não há uma vitória a comemorar como reação consequente da imprensa, da política ou das instituições em relação à devastação promovida por Bolsonaro. Nenhuma. A democracia é hoje a capacidade de comentar o que a extrema direita faz.

Não é nem mesmo a capacidade de articular reações. Somos todos mobilizados para o espanto e a indignação, o que não significa quase nada. Esse é nosso limite.

Bolsonaro, o Trump infectado e todos os líderes da extrema direita sabem que o truque é dizer e fazer besteiras. É falar de Deus, do diabo e do comunismo e manter as pessoas ocupadas com seus medos, suas frustrações e suas ignorâncias.

A extrema direita tem o controle dos mecanismos de manipulação do desalento e dos déficits de educação, de informação, de discernimento, de inteligência básica.

Eles descobriram que é fácil orientar e produzir temores, ódios e ressentimentos. Os que tentam se opor a essa destruição não têm efetividade.

São minoritários no Ministério Público e no Judiciário. Perdeu-se a capacidade de articulação de partidos, sindicatos e universidade. Os estudantes nem tentam ser efetivos.

Bolsonaro nos transformou em meros observadores do que ele faz ou deixa de fazer.

Será sempre assim? Dizem que não, porque também essa seria uma situação transitória. Mas não há consolo nessa constatação acaciana.

Todas as situações, em todas as áreas, em todos os tempos, com exceção da morte, são transitórias. A ditadura foi transitória por mais de duas décadas. Desta vez pode ser pior.