PUBLICADO NO PUBLICO
POR FRANCISCO ASSIS
Nestas horas tão angustiantes é impossível deixar de olhar para o Brasil, país tão próximo e tão presente no nosso imaginário colectivo. Por mais europeus que sejamos, e somo-lo profundamente, nenhum outro povo suscita em nós um sentimento tão forte de irmandade como o povo brasileiro. Nada do que se passa naquele país nos é estranho. Essa é a razão pela qual temos seguido com particular atenção a forma como as autoridades brasileiras têm tratado o problema da pandemia viral que assola o mundo. Desgraçadamente, o que se nos depara é a perspectiva de um desastre anunciado e previamente denunciado.
Jair Bolsonaro não é um canalha acidental. A ausência dos mais leves vestígios de integridade moral constitui a essência da sua personalidade, tal como ela publicamente sempre se manifestou. Só assim se compreende, entre outras coisas, a sua sórdida declaração aquando da votação da destituição da Presidente Dilma Rousseff. Convirá recordar que nessa ocasião o sacripanta não teve pejo algum em declarar o seguinte: “Dedico o meu voto à memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff.” Este Coronel Ustra foi um dos maiores torcionários no tempo da ditadura militar que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985. Dificilmente se conceberia acto mais vil.
Eleito e empossado Presidente da República, o medíocre capitão, que acabou compulsivamente afastado do Exército, tem vindo a dirigir o país com o mesmo grau de alarvidade que sempre caracterizou a sua intervenção política. Tudo no Presidente brasileiro é do domínio da fraude, da fancaria, da pura indigência mental. Tem como referência “intelectual” um tal Olavo de Carvalho, figura semi-anedótica que se pretende passar por filósofo, depois de ter dedicado parte da sua vida à prática da astrologia, essa ciência ultra-sofisticada que, como todos sabemos, permite antever o futuro. Formou um Governo à sua imagem, repleto de militares e integrado por fanáticos religiosos e serôdios representantes da Escola de Chicago. Para ministro da Justiça escolheu o justicialista Sérgio Moro, uma das personagens mais sinistras do Brasil actual.
Por tudo isto não pode causar espanto a forma como Bolsonaro tem gerido internamente a dramática crise sanitária que se abateu sobre o planeta. O seu comportamento só pode ser apodado de criminoso. Recorrendo a um discurso anti-racionalista e anti-científico formulado num tom jocoso, o Presidente brasileiro lançou uma mensagem pública e optou por uma linha de actuação política que, se não for rapidamente contrariada, poderá condenar milhares, senão milhões, de brasileiros à morte. O seu comportamento é imperdoável – considero-o equiparável ao de alguns criminosos de guerra que acabaram por cair na alçada da jurisdição penal internacional.
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com uma parte significativa da sua população a viver em situação de carência absoluta; dispõe de um sistema sanitário público débil, a precariedade habitacional é por demais evidente, escasseiam as infra-estruturas básicas. O contexto não poderia ser mais favorável à rápida propagação de uma doença altamente contagiosa e com uma elevada taxa de letalidade. Como sempre, será a população mais desfavorecida, esses milhões e milhões de brasileiros que procuram escapar diariamente à miséria e à fome, quem constituirá a principal vítima de tão criminosos desmandos presidenciais. Basta pensar nas favelas do Rio de Janeiro, nos subúrbios de São Paulo, na imensa pobreza nordestina, para antecipar a dimensão trágica do que poderá vir a suceder.
A verdade é que Bolsonaro foi eleito Presidente da República do Brasil. Já na ocasião era óbvia a sua impreparação política, intelectual e moral para o desempenho de tão exigente função. Como foi possível a eleição de uma figura destas? Não desconheço a estereotipada teoria de que os brasileiros se queriam a todo o custo libertar do PT. Essa tese é histórica, política e moralmente improcedente. O que houve foi um processo devidamente orquestrado por vários sectores da elite política e oligárquica visando a demonização da governação do PT numa altura em que esta se debatia com os sérios problemas gerados por uma crise económico-financeira internacional.
Por insuficiente cultura democrática, própria de uma sociedade ainda largamente dominada por um legado mental escravocrata, amplos sectores da classe média aderiram a um projecto subversivo que teve na destituição de Dilma Rousseff o seu momento inaugural. A seguir, com o apoio da fortíssima corrente evangélica e com a participação activa de muitas das principais figuras do centro-direita, promoveram a eleição de Bolsonaro. Tudo isto com o objectivo de impedir uma verdadeira democratização social do Brasil.
Nessa perspectiva há muito boa gente que tem responsabilidades por cumplicidade pretérita com o que agora está a acontecer. Muitos estarão genuinamente arrependidos e dispostos a contribuir para a correcção do grave erro cometido. Porém, o tempo urge. Pela sua conduta criminosa e pelas consequências trágicas que dela poderão advir, o Presidente brasileiro perdeu aquilo que se designa por legitimidade de exercício. Há que retirar daí todas as ilações.