Boulos no segundo turno? Por Aldo Fornazieri

Atualizado em 12 de outubro de 2020 às 7:23
Guilherme Boulos e Luiza Erundina formam a chapa do PSOL à Prefeitura de São Paulo
(foto: Reprodução/Facebook)

Publicado originalmente no site Brasil247

POR ALDO FORNAZIERI, professor da Escola de Sociologia e Política (Fespsp)

Boulos e Erundina podem passar para o segundo turno? Sim, é possível. Neste momento é o candidato de esquerda que mais tem chance de concretizar essa esperança. Mas trata-se de uma possibilidade e não de uma certeza. Em grande medida, a passagem da possibilidade em factibilidade depende muito da estratégia que a chapa e o PSOL estão implementando.

A campanha de Boulos tem emitido alguns sinais de que pretende disputar as eleições contra Bolsonaro e não contra Covas. Não que Bolsonaro tenha que ficar incólume nas campanhas dos candidatos de esquerda. Mas é preciso saber o que está em jogo.

A campanha do PSOL parece ter escolhido Celso Russomano como inimigo para polarizar. Neste sentido, a postura sugere que na avaliação do partido e da campanha, Russomano teria maior chance de passar para o segundo turno. Não parece ser o mais provável. Covas, seja pelo fato de ser prefeito, seja pela força do PSDB na cidade e no Estado, parece ter mais força e mais chance de passar para o segundo turno. É improvável, embora não impossível, um segundo turno entre Russomano e Covas. Russomano tem o eleitorado menos fiel. Então, a campanha do PSOL precisa ter uma avaliação mais fina acerca de quem tem mais chance de passar para o segundo turno e, a partir disso, escolhê-lo como o inimigo a polarizar.

Ademais, o que esta eleição julga é a administração Dória/Covas. A primeira clivagem do eleitorado é entre os que querem a continuidade de Covas e aqueles que não querem. Como Covas tem avaliações positivas e negativas mais ou menos equipotentes, não há uma clara conjuntura de conservação e nem uma clara conjuntura de mudança. Também por esta razão, Covas tem chances razoáveis de passar para o segundo turno. Neste sentido, o seu oponente deverá ser aquele que melhor encarnar o sentimento de mudança.

É preciso considerar também que o eleitorado de Covas dificilmente migrará para Boulos. Se ele tiver que migrar, migrará para França ou para Matarazzo. Já o eleitorado de Russomano é mais popular: pode migrar para Boulos ou até para Tatto. Então, a tática que precisa ser definida consiste em como persuadir e capturar o eleitorado de Russomano. Por um lado, deve-se mostrar que Russomano não o representa e que é um engodo, e nisso vem a crítica ao candidato. Por outro, Boulos deve persuadir esses eleitores, dialogando com eles, mostrando que ele os representa.

“Persuadir” depende de algumas coisas: capacidade argumentativa e comunicativa, o conteúdo dos argumentos e da comunicação, a natureza das propostas e o carisma e empatia. Uma plataforma ou programa de campanha se define pelas prioridades. São as prioridades que devem estruturar o programa, não a listagem de temas e nem a enumeração por ordem alfabética.

Numa cidade como São Paulo, e este dado é definido pelo próprio povo, a prioridade é a Saúde. Não basta dizer que a Saúde é prioridade. É preciso expressar essa prioridade em proposta crível, factível. As propostas para a Saúde no programa de Boulos, assim como nos demais programas, não são suficientes para que elas evidenciem a prioridade. Neste sentido, a campanha de Boulos deveria ter um programa popular e inovador de Saúde pública, que evidenciasse que os moradores da periferia, o povão, não ficarão sem assistência médica e hospitalar.

Pelo que se viu no debate da Band, os candidatos tendem a priorizar a geração de emprego. Não está ao alcance de uma gestão municipal a capacidade de criar empregos de forma significativa. Uma gestão municipal pode mitigar o desemprego. Além da Saúde, uma gestão municipal deve ter como outras prioridades o transporte, o viário público e a limpeza urbana, a educação, a cultura, a habitação e o saneamento. Claro, existe um conjunto de outros pontos, como políticas para setores específicos que precisam ser contemplados num programa e numa campanha.

Além de acertar a mão na escolha da polarização, na abordagem dos eleitores e nas prioridades do programa, existe o desafio de como fazer a campanha em tempos de pandemia. O horário eleitoral vinha perdendo terreno para as redes sociais nas últimas eleições. Para uma campanha como a de Boulos, as redes sociais são importantíssimas. O desafio consiste em como criar uma campanha de impacto nas redes, que tenha força de propagar-se. E será preciso compensar a escasso tempo no horário eleitoral com uma forte campanha de rua. Dada a dificuldade de juntar pessoas, as caminhadas, as carreatas e as visitas deveriam ser intensificadas.

É preciso reconhecer, no entanto, que os partidos, os valores e as políticas de esquerda estão fragilizados neste momento. Os eleitores do campo progressista e de esquerda estão identificando em Boulos e Erundina, pela singularidade, qualidades e virtudes que ambos expressam, a esperança de um bom desempenho e da passagem para o segundo turno. Se adotarmos a concepção e “partido orgânico” de Gramsci, podemos dizer que Boulos, Tatto e Orlando Silva fazem parte de um mesmo partido. Representam frações diferentes de um mesmo partido. Somente os militantes organizados têm uma fidelidade específica a cada fração ou facção. Os eleitores progressistas e de esquerda têm fidelidades genéricas e eles saberão unificar o campo de esquerda em torno do candidato que terá maiores chances de protagonizar o embate com a direita.

Neste início de campanha, o desempenho de Jilmar Tatto ainda é uma incógnita. Mas ele sofre uma crítica injusta por parte de muitos setores petistas, atribuindo a ele o fraco desempenho. O fato é que existe ainda um forte antipetismo, algo que o partido insiste em não enfrentar. Se Carlos Zarattini ou Alexandre Padilha fossem os candidatos, o desempenho, certamente, não seria tão diferente daquele que Tatto expressa. Somente Fernando Haddad teria condições de fazer uma diferença bem maior.

A campanha de Boulos tem o desafio de decidir se quer ser a campanha de uma fração da esquerda ou a campanha do “partido orgânico” do povo. Se quer ser uma campanha que quer passar para o segundo turno e lutar para vencer ou se quer ser uma campanha para marcar posições ideológicas. Se quer ser a campanha de um programa para a cidade ou se quer ser uma campanha de temas, mais afeita a campanha de vereadores.

Certamente, vivemos um momento de grande tensionamento político, ideológico e programático. É preciso travar uma disputa no plano da política, dos valores e da organização. Esta disputa precisa fazer sentido para as amplas populações que vivem nas periferias. Ela só fará sentido para este povo sofrido se for travada de forma inextrincavelmente ligada aos interesses e necessidades desta população que hoje não têm líderes, não tem voz, não tem vez e não tem representação política.