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Bowie encenou a própria morte e enganou o mundo direitinho. Por Kiko Nogueira

 

ATENÇÃO: ESTE ARTIGO NÃO CONTÉM AS PALAVRAS “CAMALEÃO” ou “CAMALEÔNICO”

 

Nada como más notícias para tirar alguém das férias. Logo pela manhã, um amigo escrevia um post em algum lugar dizendo que a Terra fica vazia sem um alienígena como Bowie.

Bowie morreu? Espera um pouco.

Grandes artistas têm esse estranho dom da proximidade, da empatia imediata, de entrar na sua casa, na sua alma e falar para você o que você não ousa falar. É hora de ouvir todos os lados Bs, aqueles que você desdenhou por não trazerem “nada de novo” (“o melhor do cara ficou nos anos 70” etc etc.)

Escuto agora “Valentine’s Day”, de 2013, pensando na frase do meu amigo, em como ficamos mais pobres e em como Bowie produziu e produziu até o final. Foda-se Ziggy Stardust, ao menos por ora. Dane-se “Modern Love”.

(Viva Ziggy, viva Modern Love, viva Ashes to Ashes, viva tudo isso agora e até nunca mais cansar de novo).

Antena da raça. Bowie, no rock, não encontrou paralelo. Sempre algumas quadras adiante, mas nunca de modo deixar que isso prejudicasse sua carreira. Avant garde espetacularmente comercial.

Assumiu a bissexualidade num tempo em que ninguém era bissexual, ao contrário de hoje. Incorporou personagens diferentes. O hippie de cabelo encaracolado do início. Posou de saia na capa de “The Man Who Sold The World”. Matou o extraterrestre Ziggy depois de estourar. Quem tem coragem de mudar assim?

Virou cantor de soul, lançando uma obra prima chamada “Young Americans”. No álbum seguinte já tinha encerrado esse ciclo. Encarnou um estranho “Thin White Duke”. Exilou-se em Berlim para produzir a trilogia “Heroes”, “Lodger” e “Low”. Jamais parado no mesmo lugar.

Teve o estouro mundial merecido em 1980, com os hits de “Let’s Dance”.

Quando a fonte dos hits secou — porque ela seca para todos —, fez pelo menos um disco espetacular, “Reality”, com uma versão matadora de “Try Some, Buy Some”, o libelo religioso antidrogas de George Harrison.

Bonito, dono de uma voz de barítono única, gênio, capaz de ir do punk a Nina Simone com classe e propriedade, do eletrônico ao Queen, cantou sobre tudo.

O vício em cocaína, sexo, viagens espaciais, Berlim, nazistas, monstros, herois, amor, ódio, o irmão que se matou, deus e o diabo. Sua influência está aqui, ali, em todo lugar do pop.

Suas últimas canções falam, finalmente, da morte. David Bowie estava com câncer há dezoito meses. “Look up here, I’m in heaven”, diz ele em “Lazarus”.

O vídeo é repleto de imagens alusivas à morte. Ele aparece preso a uma cama de hospital, seu corpo frágil tremendo, os olhos cobertos de bandagens.

Transformou sua despedida numa obra de arte, como se esperava. Seu velho produtor Toni Visconti chamou de “presente de despedida”. “Ele sempre fez o que quis”.

“Lazarus” — uma homenagem ao homem que Jesus ressuscita após quatro dias — foi programado para ser lançado agora. Um coup de grace de Bowie.

No vídeo, enquanto ele levita sobre o colchão, uma mão surge de debaixo da cama e outro Bowie surge: mais forte, livre, dançando no quarto.

Termina assim: “I’ve got scars that can’t be seen. I’ve got drama, can’t be stolen. Everybody knows me now.

This way or no way, you know, I’ll be free. Just like that bluebird, Oh I’ll be free.”

Numa tradução livre: “Eu tenho cicatrizes que não podem ser vistas. Eu tenho drama que não pode ser roubado. Todo o mundo me conhece agora. Desta maneira ou de maneira nenhuma, eu serei livre. Como aquele pássaro azul, eu serei livre”.

Foda-se Ziggy Stardust. Fodam-se as férias. Bowie está livre. Morreram os medíocres. Vida longa a David Bowie.

 

Kiko Nogueira

Diretor do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo; diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.

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Kiko Nogueira

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