Brasil alcançará 400 mil mortos ainda neste mês, mas Bolsonaro continua bem. Por Luis Felipe Miguel

Atualizado em 19 de abril de 2021 às 19:49

Publicado originalmente no perfil do autor

Por Luis Felipe Miguel

Jair Bolsonaro. Foto: AFP

Um ano depois da crise que levou à demissão de Moro, o “superministro” e “salvador da Pátria” que caiu sem nem arranhar a popularidade do governo, Bolsonaro tornou-se senhor da Polícia Federal. A blindagem em favor dele e de seu círculo mais próximo está cada vez mais forte.

Ele continua interessado em falar só para seu público cativo, aquele que acredita em tudo e para o qual (nas palavras de um de meus bolsomínions de referência) Bolsonaro é “um dos grandes heróis do mundo cristão”. Dentro deste cercado, não existe revelação de CPI capaz de abalar a fidelidade ao mito.

Afinal, não é como se o comportamento criminoso do chefe de governo já não estivesse escancarado. E esse contingente, indiferente à morte, à miséria, à fome, à violência, à destruição, parece bastar para levá-lo ao segundo turno de 2022.

A oposição de direita, que apresenta a si mesmo como “centro”, permanece à espera de um milagre.

João Doria, que seria o nome mais forte desse campo, é um sujeito notavelmente desagregador. Não é capaz de unir, muito menos empolgar, nem mesmo o PSDB – que sabe que a repetição do fiasco de 2018 (com a candidatura Alckmin) põe em risco sua posição como partido nacionalmente relevante.

Mandetta e Leite são factoides. Moro ficou no caminho. A candidatura de Huck é uma aposta de alto risco, com grande chance de fracassar – nem o marido de Angélica está convencido dela.

Ciro, o nome com maior potencial eleitoral do grupo, capaz de alcançar talvez uns 12%, também não é uma criatura fácil. E, tendo passado uma boa parte das últimas décadas tentando consolidar um espaço para si na centro-esquerda, ainda está mal enquadrado na nova posição.

O principal problema, no entanto, nem é a ausência de nome. É que, por mais que insistam no discurso dos “dois extremos” e afirmem que uma terceira via seria o caminho do meio, o centro já está ocupado.

Está ocupado por Lula.

O ex-presidente continua acenando com um caminho não traumático para restauração da democracia e da ordem constitucional, que acomode interesses e restaure as condições da disputa política civilizada sem excluir ninguém, evitando cuidadosamente assustar as classes dominantes.

O caminho para a candidatura de Lula ainda não está seguro, mas um novo golpe judiciário que o impeça de concorrer é mais difícil hoje. Não apenas a Lava Jato foi completamente desmoralizada como se erodiu o consenso em favor da manobra, na mídia, no judiciário e no empresariado.

A composição da chapa é delicada. Ainda que o ex-presidente esteja esbanjando energia, ele será quase um octogenário ao receber novamente a faixa presidencial em 2023. O nome do vice ganha peso extra nestas circunstâncias.

Na principal organização partidária à esquerda do PT, o PSOL, são vários os indícios de que um apoio à candidatura de Lula é possível.

A entrevista de Boulos à Folha de S. Paulo, na semana passada, é transparente. Mas – a despeito de referências pro forma à necessidade de uma aliança programática – ele sinaliza que o apoio a Lula deveria ser compensado pelo apoio do PT à sua própria candidatura ao governo de São Paulo.

Parece-me equivocado. Primeiro, porque o PSOL não tem esse poder de barganha.

Não é como se o PT estivesse carente de nomes para disputa o governo paulista. Pelo contrário: Haddad é o primeiro colocado nas pesquisas.

E não é como se uma candidatura do PSOL à presidência fosse significar um grave problema para Lula. Em 2018, Boulos teve, convém lembrar, 0,58% dos votos válidos (um deles foi o meu). Houve deputados federais eleitos em São Paulo com mais votos do que ele recebeu para presidente.

Nas pesquisas para presidente, Lula lidera e Boulos fica com traço. E ele prefere disputar o governo paulista: quem seria o candidato psolista? Com tudo isso e também com o partido mais rachado do que antes, o que o PSOL entrega ao PT, além do discurso da “unidade da esquerda”? É pouco para ganhar a candidatura ao maior estado da federação.

Mas o principal problema nem é esse. É fazer a negociação nessa base.

Seja com candidato próprio, seja em aliança, o PSOL precisa ser capaz de pressionar o PT pela esquerda.

Em vez de enunciar vagamente a necessidade de “discutir programa” (e concretamente colocar apenas a exigência da vaga para o governo de São Paulo), apontar os pontos centrais de um programa mínimo – reforma tributária progressiva, expansão do gasto social, reforma do aparelho repressivo do Estado.

A grande tentação de um novo governo Lula será permanecer num possibilismo extremo, com um horizonte muito mais estreitado do que aquele de 2003.

Se o campo popular não estiver organizado, a direita voltará a ter o monopólio da pressão política e empurrará o governo para a defensiva absoluta. E cabe ao PSOL e às tendências da esquerda petista dar voz a essas demandas nos espaços da política institucional.