Brasil, campeão mundial da usura e da desigualdade – o papel (ou papelão) do Banco Central

Atualizado em 3 de julho de 2025 às 18:09
Favela de Paraisópolis ao lado de condomínio de luxo em SP, que virou símbolo da desigualdade. Foto: reprodução

Hoje vou tratar de uma questão econômica especialmente complexa – a política de juros do Banco Central. O artigo vai ser um pouco mais técnico. Não desista, porém, leitor ou leitora. Se tiver dificuldades com alguma parágrafo ou termo técnico, pule a passagem e continue, ou faça na rede consultas conceituais rápidas.

Desde o ano passado, na gestão Roberto Campos Neto, e em 2025, na gestão Gabriel Galípolo, o BC aumentou expressivamente a taxa básica de juro, a Selic. Os juros reais ex ante (a taxa nominal descontada a inflação esperada) subiram para níveis recordes, colocando o Brasil, mais uma vez, como campeão ou vice-campeão mundial da usura. Na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), o comando do BC indicou que os juros continuarão  altos por muito tempo, adaptando-se de maneira mais ou menos passiva às expectativas do mercado financeiro.

Esses movimentos do BC desencadearam intensa controvérsia no país. Muitos foram contra, outros tantos a favor. Quem tem razão? Os financistas, rentistas e economistas do mercado, que costumam defender taxas de juro elevadas? Ou os setores industriais, os outros setores produtivos e os economistas mais heterodoxos, que rejeitam a política do BC? Como o leitor ou leitora provavelmente sabe, eu estou no segundo campo.

A questão é mais intrincada do que geralmente se imagina. As avaliações deveriam ser feitas portanto com certo cuidado, o que raramente acontece. A usual troca de slogans e adjetivos produz, como sempre, mais calor do que luz.

Mas esse cuidado não vai me impedir de ser incisivo nas conclusões do artigo.

A política de juros altos diminui mesmo a inflação? A que custo?

Algumas perguntas iniciais: juros  elevados conseguem, de fato, controlar e reduzir a taxa de inflação, como costumam dizer seus defensores? E, em caso positivo, a que custo em termos de efeitos adversos sobre PIB, emprego, finanças públicas e distribuição da renda nacional? Trata-se de uma política eficaz? Ela é, também, eficiente?

Não há muita dúvida de que juros altos contribuem em geral e de forma importante para reduzir a inflação. Por meio de três canais, pelo menos. Primeiro porque comprimem a demanda agregada de consumo e investimento na economia, o que exerce pressão baixista sobre os preços dos bens e serviços não comercializáveis internacionalmente (non-tradeables), inclusive sobre remuneração do trabalho. Segundo porque tendem a provocar valorização cambial, o que deprime os preços em reais dos produtos comercializáveis internacionalmente (tradeables), tantos exportáveis como importáveis. Terceiro, porque a alta dos juros básicos, se for vista como sustentável, normalmente diminui as expectativas de inflação e, por essa via, tende a reduzir a inflação corrente e as taxas de juro de longo prazo. Assim, a política de juros altos é, normalmente, eficaz em reduzir a inflação.

Porém, isso não significa que ela seja eficiente, pois diversos fatores limitam os seus efeitos anti-inflacionários e produzem impactos colaterais adversos. Ela é eficaz porque gera queda da inflação; mas não é eficiente porque obtém esse resultado produzindo grandes estragos e efeitos colaterais.

Vamos a alguns desses fatores. Numa economia continental como a brasileira, o grau de abertura comercial externa, medido pela razão fluxos de comércio exterior/PIB, é inferior àquele que se observa em países pequenos e abertos. Em países pequenos, como a Suíça, a Bélgica ou a Holanda, entre muitos outros, onde o grau de abertura é muito elevado e quase sempre bem superior a 100%, a valorização externa da moeda nacional induzida por juros altos tem impacto decisivo sobre a inflação. No caso do Brasil, quem tem um grau de abertura da ordem de 40%, o impacto anti-inflacionário de uma apreciação externa do real, ainda que não desprezível, raramente chega a ser decisivo. (Diga-se de passagem que nos Estados Unidos, outra economia continental, o grau de abertura é ainda menor do que o nosso, inferior a 20%). Ou seja, a apreciação cambial requerida para obter determinada queda da inflação é maior em países como o Brasil, o que tende a solapar a competitividade internacional da economia e gerar desequilíbrio no balanço de pagamentos em conta corrente,.

Um segundo aspecto da questão: há sempre alguma rigidez dos preços e salários à baixa. Em economias como a brasileira, que tem longa tradição de indexação, existe também alguma inércia da inflação, isto é, a tendência a trazer a inflação passada para o presente, Assim, o efeito anti-inflacionário de uma determinada contração da demanda agregada é menor do que seria se os preços e salários fossem mais flexíveis e menor o componente inercial da inflação .

Em suma, por esses e outros motivos, é preciso muita contração da demanda e/ou muita apreciação cambial para reduzir a inflação e colocá-la dentro da meta, especialmente quando essa meta é fixada de modo excessivamente ambicioso. É o que temos hoje – herança  da incompetente gestão econômica do governo Temer, aquela que era conduzida por um suposto “dream team”, como se dizia na época em relação à Fazenda e o Banco Central. O governo Lula deveria, logo de cara, ter aumentado a meta central de inflação e o intervalo em torno dela, como queria o presidente Lula. Nada foi feito, porém. Prevaleceu na área econômica o receio de desagradar o mercado.

Prédio sede do Banco Central. Foto: reprodução

Efeitos sobre as finanças públicas e a distribuição da renda nacional 

Os juros altos produzem efeitos colaterais destrutivos. Além de desacelerar a economia, eles desestabilizam as finanças púbicas de duas formas – diretamente (ao sobrecarregar o custo da dívida pública) e indiretamente (via efeitos adversos da retração do nível de atividade sobre arrecadação e gastos cíclicos como o seguro-desemprego). O setor público como um todo arca atualmente com despesas líquidas de juros da ordem de 8% do PIB! Esse componente, e não o badalado resultado fiscal primário, é que explica o déficit público e o crescimento da dívida do governo. O déficit primário está em torno de 0,6% do PIB.

E o problema não para aí. Quando o governo paga juros escorchantes, quem recebe? Quem são os credores do governo? Fundamentalmente, as instituições financeiras, os super-ricos, os ricos e, em menor medida, a classe média alta, além dos credores estrangeiros. Os juros altos são, na verdade, um poderoso instrumento de concentração da renda em um país que já é, há muito tempo, o campeão ou um dos campeões mundiais em matéria de desigualdade social. Convém reparar, além disso, que essa política monetária coloca reais exatamente na mão daqueles que têm alta propensão à fuga de capitais em momentos de incerteza, como no final de 2024 – fuga facilitada, recorde-se, pela liberalização prematura da conta de capitais, herança lamentável da gestão Fernando Henrique Cardoso. Alimenta-se assim com juros generosos o monstro da especulação cambial desestabilizadora. O país sofre e a turma da bufunfa comemora.

Ninguém está pedindo que o novo comando do Banco Central dê uma cavalo-de-pau na política monetária. Mas, francamente, status quo?? Manter tudo como estava nas gestões anteriores da instituição??

Paulo Nogueira Batista Jr.
Economista, escritor, autor do livro “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento estabelecido pelos Brics