Brumadinho: sem acesso a exames, 1 milhão de pessoas podem ter metal pesado no sangue

Atualizado em 26 de outubro de 2019 às 9:46

As Infeções de pele são umas das manifestações clínicas que podem ser causadas pela intoxicação com metais pesados / FOTO: Brasil de Fato

PUBLICADO NO BRASIL DE FATO

POR PEDRO STROPASOLAS

O caminhão inutilizado, o filho caçula que abandonou a pesca e as brincadeiras, e as infecções na pele que atrapalham o sono. A vida de Aílton Silva, morador do município de Citrolândia (MG), a 20 km de Brumadinho, há meses se resume a tardes de confinamento em sua própria casa.

“Eu fui no médico. Ele me passou o remédio e me mandou procurar uma dermatologista. Eu estou usando mais creme, óleo de amêndoa, e evitando o sol. Porque, se eu ficar no sol, mesmo com camisa, arde e começa a sangrar. Tenho que trocar o lençol da minha cama duas, três vezes por semana, de tanto que ele fica manchado de sangue”, conta o caminhoneiro de 57 anos, afastado do trabalho por conta das complicações.

Nove meses após o crime que tirou a vida de 250 pessoas, ele e outros ribeirinhos de 48 municípios aguardam por diagnósticos e exames toxicológicos.

Segundo levantamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 1,3 milhão de pessoas que vivem às margens do rio Paraopeba podem estar contaminadas com metais pesados.

Carlos Machado de Freitas, coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa em Emergências e Desastres em Saúde (Cepedes/Fiocruz), aponta que todas as pessoas que vivem à margem do Paraopeba e dependem da sua água foram afetadas.

“Um desastre como esse provoca uma grande alteração ambiental. E uma das alterações ambientais mais sérias é exatamente a contaminação dos rios”, ressalta.

Aílton Silva, que vive com a esposa e os três filhos, mudou-se para o bairro Cruzeiro, na Colônia Santana, em 2019. O plano era construir uma vida tranquila ao lado da família, do rio e das árvores frutíferas.

Hoje, o adoecimento das romãs, acerolas e laranjas, que crescem envoltas por uma espécie de ferrugem, evidenciam o cenário de desalento do caminhoneiro, que observa a degradação do leito do Paraopeba.

“Antes dessa destruição, ninguém dependia da Vale. Hoje, todo mundo virou escravo da Vale. Qualquer coisa que vai fazer agora, precisa dela, e ela não tá nem aí pro ser humano. Ela quer pegar a riqueza do nosso Brasil, levar para fora e deixar o brasileiro a se lascar. Eles não precisam de nós. Nós precisamos da natureza, e o que ela fez? Destruiu”, lamenta.

O último boletim, divulgado em outubro pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM), revela a presença do minério manganês em diferentes pontos do Paraopeba em níveis acima do permitido. O contato com o metal, por vias aéreas ou por meio da água, pode causar câncer, fraqueza muscular e motora, além de alterações neurológicas.

No município de Esmeraldas, a 60 km de Brumadinho, os níveis de manganês estão entre 1,5 e 3 vezes acima do permitido. No mesmo documento, é possível verificar a presença de ferro dissolvido e alumínio dissolvido também fora dos padrões.

Os resultados apresentados pelo estado de Minas Gerais indicam que a lama da Vale chegou aos limites do reservatório de Retiro Baixo, a cerca de 300 km Brumadinho.

A médica de família e comunidade Nathália Neiva integra a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares e atuou durante seis meses no serviço de saúde de Barra Longa, município atingido pelo rompimento da barragem do Fundão, em 2005. Naquele caso, a alegação das empresas, tanto Samarco como Vale, era que os níveis de contaminação não tinham relação direta com o desastre, mas sim, com o histórico de mineração na região.

Ela explica, porém, que a passagem da lama pelo rio Paraopeba fez com que fosse alterada a disponibilidade de minerais no leito do rio. “Pode ser da composição própria da lama, como de metais já disponíveis no ambiente. Quando você tem uma passagem de milhões de metros cúbicos de lama, ela revolve o fundo do rio e disponibiliza esse metais em maior quantidade”, aponta.

A recomendação da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad), da Secretaria de Estado da Saúde (SES) e da Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Seapa) é que não seja utilizada água do rio Paraopeba até o município de Pompéu, a 177 km de Brumadinho, pois não há comprovação de ausência de risco à saúde humana.

Como contrapartida, a Vale ficou responsável pela distribuição de água à população atingida. Até agosto, a mineradora informa que já distribuiu mais de 250 milhões de litros de água em 19 municípios, para consumo humano e irrigação agrícola.

Mas, segundo Aílton, nem todos são atendidos. “A princípio, falaram pra não usar a água da cisterna, depois falaram que poderia usar. As cisternas de todos os meus vizinhos aqui tiveram coliforme fecal, alumínio, vários tipos de bactérias. Eles dizem que fazem análises de quinze em quinze dias, mas na minha casa eles nunca vieram”, reclama.

Vizinho de Ailton, o trabalhador rural José de Jesus, também de Citrolândia, trabalha na roçagem de um terreno à beira do rio. Ele conta que, três meses após a tragédia, infecções na pele e caroços, principalmente nas extremidades das mãos e das pernas, começaram a aparecer.

“Tem que fazer um exame para ver. Eu não posso falar de um trem que eu não tenho certeza”, admite.

Segundo Machado, o contato indireto com os rejeitos de mineração oferece risco à saúde da população atingida, e a exposição a produtos químicos se dá através da ingestão de água, alimentos contaminados e poeira. Os efeitos são de longo prazo, incluindo danos renais e impactos no sistema nervoso central.

Ele explica, no entanto, que é muito difícil estabelecer uma relação causal direta entre a tragédia e as manifestações clínicas da população atingida, e que a Vale se aproveita dessa condição.

“A empresa é responsável e culpada por esse desastre. Ela deve assumir a responsabilidade por efeitos cujas as relações e interrelações nem sempre são diretas”, enfatiza.

O pesquisador reitera também a necessidade de um trabalho contínuo de monitoramento nos pontos com maior contaminação ao longo do rio. “Essas populações precisam fazer coletas de amostra para definir protocolos de sinais e sintomas para o monitoramento na rede de atenção. O cuidado que tem que se ter é principalmente a poluição atmosférica, identificar a composição, principalmente nas áreas mais expostas”, analisa.

A atuação da Fiocruz em Brumadinho, em parceria com o Ministério da Saúde, envolve a realização de dois estudos: um inicial, para avaliar o impacto imediato, em até dois anos, e uma pesquisa mais longa, de acompanhamento da população nos próximos 20 anos.

No município, o monitoramento preliminar da saúde dos bombeiros que atuaram nas buscas pelas vítimas foi a única comprovação da intoxicação por substâncias vazadas da barragem. Quatro deles, após exames, laboratoriais apresentaram alta concentração de alumínio e cobre no sangue e na urina, em nota divulgada pelo estado de Minas Gerais em fevereiro.

Desde aquele caso, a Prefeitura não consegue dar um panorama sobre o quadro toxicológico dos atingidos. “Até então, nós não temos resultados que fechem um diagnóstico que permita falar que tem uma contaminação por metais pesados”, revela Júnio de Araújo Alves, secretário Municipal de Saúde.

Considerando o Censo de 2010, 10% dos quase 40 mil habitantes de Brumadinho foram diretamente afetados pela tragédia, segundo avaliação preliminar da Fiocruz.

Em Mariana (MG), após a tragédia que vitimou 19 pessoas em 5 de novembro de 2005, o primeiro diagnóstico toxicológico aprofundando sobre a população atingida foi apresentado três anos mais tarde.

O relatório do Instituto Saúde e Sustentabilidade (ISS), enviado ao Ministério Público em março de 2018, comprovou a contaminação de onze moradores de Barra Longa por metais pesados. Todos tinham níquel no sangue, e metade apresentou níveis de arsênico acima do normal.

O município com cerca de 5 mil habitantes foi o que apresentou maior sobrecarga em seu sistema de saúde.

A Fundação Renova, criada pelas empresas Samarco, Vale e BHP Billiton e responsável pelo processo de reparação dos danos causados pelo crime, questiona os resultados, mas nunca apresentou nenhum diagnóstico.

Desenvolvido pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), um diagnóstico mais atualizado será apresentado em novembro, quando a maior tragédia ambiental da história do país completará quatro anos.

Assim que a notícia do rompimento da barragem de Brumadinho (MG) foi recebida pelo Ministério de Saúde, passou a atuar o Centro de Operações em Saúde Pública (COES), com a presença da força nacional do Sistema Único de Saúde (SUS). O COES permitiu ao sistema de saúde de Brumadinho buscar ativamente as pessoas que tinham sido atingidas, mesmo aquelas que pareciam não sofrer os impactos do crime.

Antes do rompimento, Brumadinho tinha um sistema de saúde com 100% de cobertura em saúde da família. Essas condições garantiram que a resposta fosse mais rápida que em Barra Longa, por exemplo. Mas o apoio emergencial não evitou a sobrecarga no sistema de saúde do município, em decorrência da tragédia.

Um balanço divulgado em agosto pela Secretaria Municipal de Saúde revelou esse desequilíbrio. Nos atendimentos da rede primária, nos postos de saúde, houve um aumento de 63% em relação a 2018. Antes do crime, trabalhavam 790 profissionais nos aparelhos de saúde do município; hoje, são 1050. Quanto aos prontuários no Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), antes havia 39,5 mil. Hoje, estão registrados 44,5 mil prontuários. Na UPA, em um plantão cheio, eram registrados cerca de 160 atendimentos. Hoje, são 280.

Segundo o secretário, a maior procura se dá na área de saúde mental, mas também há inúmeros problemas de pele, cistites e infecções respiratórias agudas.

O desequilíbrio também aumentou os gastos públicos. Até o final de 2019, a prefeitura projeta um aumento de R$ 15 milhões com saúde. Para cobrir a sobrecarga, os recursos serão pagos pela Vale por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado com o Ministério Público, com validade de dois anos.

SAÚDE MENTAL

O secretário Júnio de Araujo Alves teme as consequências para a população do município após o fim do acordo, especialmente na área de saúde mental.

“Quem trouxe esse desequilíbrio para o sistema foi a Vale. Então, no mínimo, a diferença que nos gastarmos agora nesse momento tem que ser coberta por ela. Só que esse compromisso dela é de 24 meses. Eu sei que esse problema da saúde mental ele vai perdurar em Brumadinho mais que 24 meses. Ele mexe em todo o sistema”, constata.

Estudos mostram que ele tem razão. A Pesquisa sobre a Realidade de Saúde Mental em Mariana (PRISMMA), feita pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), trouxe um panorama sobre o adoecimento mental da população atingida quase três anos após a tragédia. A análise, que entrevistou 271 pessoas, revelou um índice de depressão cinco vezes superior à média brasileira. Além disso, foi identificado o risco de suicídio em 16,4% dos entrevistados.

Em Brumadinho, atuam três equipes de saúde mental na atenção básica, que fazem a cobertura de todo município, com trabalhos de atenção individual e comunitária em grupos e no fortalecimento da saúde mental na saúde da família.

Cada equipe é formada por dois profissionais de psicologia, serviço social e terapia ocupacional, além de um médico psiquiatra que dá apoio apoio matricial aos médicos de saúde da família e comunidade.

No primeiro semestre de 2019, foram registradas 39 tentativas de suicídio na cidade: uma alta de 23% em relação ao mesmo período em 2018. Foi registrado também um aumento de 60% no número de antidepressivos por pacientes da rede pública de saúde em relação ao primeiro semestre de 2018.

Além disso o uso de ansiolíticos aumentou 80%, em relação ao primeiro semestre de 2018, e o uso o de risperidona, medicamento indicado para psicoses delirantes ou esquizofrênicos, registrou um crescimento de 143%.

“Esse adoecimento mental mudou o conceito de dor, de saúde e de doença na cidade. Hoje eu tenho uma população mais sensível. A sensação dela de dor e de doença está à flor da pele por causa desse estresse pós-traumático”, explica o secretário.

Em nota, a Vale informou que o atendimento aos atingidos segue o planejamento desenvolvido pelo Comitê de Operações de Emergência em Saúde. A estrutura está vinculada à Secretaria Municipal de Saúde de Brumadinho.

A mineradora diz que já foram investidos R$ 2,6 milhões para a compra de equipamentos emergenciais e para a contratação de profissionais de saúde e da área psicossocial. Além disso, foram destinados cerca de R$ 30 milhões para a assistência social e saúde aos atingidos pelo rompimento da barragem.