Camila

Atualizado em 28 de agosto de 2010 às 16:02
Londres fica menos bela sem essa ruiva

Escrevi ontem sobre coisas complicadas. Algumas pessoas que não gostaria de lembrar reapareceram, por força das circunstâncias. Republico, então, um texto que fiz para minha caçula, Camila. Depois de dois meses em que ela preencheu com sua alegria espirituosa e incessante o apartamento do pai em Ranelagh Gardens, Camila retornará hoje a São Paulo. Não preciso dizer o quanto Londres fica menos rica com a ausência de Camila.

Não sei se você vai ler isso, filha. Você é tão menina, e acho que você choraria se lesse isso hoje. Talvez outra hora. Vou fazer que nem aquele professor americano que, com os dias contados, deu uma aula de como morrer, e como viver, a uma platéia enlevada. A aula acabou no YouTube, virou um fenômeno mundial, e o professor disse que a primeira razão de ter feito o que fez foi mostrar aos filhos o quanto os amava. Ele disse que sua mensagem era como uma garrafa com palavras jogada ao acaso da água do mar. Talvez a garrafa seja encontrada e o conteúdo lido, talvez não. O que escrevo talvez seja lido por você, pedaço adorado de mim, talvez não. Jogo dados com o destino, para usar uma frase de Einstein.

Fiquei tocado com o que você me disse outro dia, filha. Não, não quero voltar a nascer, você disse ao entrar no carro na hora em que a busquei em sua avó. Você tão garota, e palavras tão profundas pronunciadas com a ênfase necessária, os pequenos olhos brilhantes molhados. Mas a voz firme. Imagino que alguém tivesse falado com você sobre reencarnação. Que eu poderia responder além de que eu também não? Nascer em outra família? Ter outro pai que não o que eu tive? Outra mãe? Outros irmãos? Outros filhos? Outros amigos? Outra filha que não você, pedaço adorado de mim?

Não. A idéia é insuportável para mim. E naquela conversa que tivemos vi que para você também. Filha. Minha vida seria miseravelmente triste sem você. Não é que eu não queira outra vida. Eu desprezo, eu renego o que quer que seja que signifique viver sem as pessoas e os lugares que amo. Filha. O professor americano está morrendo, e tem uma filhinha pequena. Menor que você. Ela não entende as coisas direito ainda. Ele disse que quer que ela saiba, quando crescer, que ele foi o primeiro homem que se apaixonou por ela. Achei isso lindo, triste, é verdade. Mas mais lindo que triste. Uma declaração de amor sublime. A sensação de que foi tão amada pelo pai morto tão cedo haverá de dar força à pequena filha do professor na hora certa.

Filha. Eu também. Fui o primeiro homem a se apaixonar por você, e se há uma coisa certa é que nenhum outro a amará mais do que eu, por mais que a ame. Sua pequena mala. Quando ela está em casa o papai fica muito feliz. A cabeleira rebelde ruiva vai dominar e alegrar a casa. Um dia você terá idéia de como ver a seu lado as trapalhadas de Michael e Dwight, ou as de Joey e seus amigos, tornou a vida do papai melhor. O jeito furtivo como olho com adoração para você quando você está entretida com Michael. Se você um dia ler o que estou escrevendo, queria que você levasse sempre essa imagem com você: meu olhar furtivo e amoroso para você. Gosto da forma sutil como você cobra minha atenção ao ver as comédias, quando ameaço pegar um livro ou uma revista, e gosto ainda mais quando você coloca seu travesseiro na barriga do papai e põe sua pequena cabeça dourada nele.

Nada nos tirará isso, filha. Pode parecer bobagem o que estou escrevendo, mas o tempo vai mostrar a importância das nossas noites cômicas.

Mais para a frente vou colocar Rei Leão para vermos juntos. Lembro que você chorou na primeira vez, mas na segunda talvez a gente consiga alguma coisa além das lágrimas. Ali há uma lição, assim como na mensagem do professor que está morrendo. O ciclo da vida. Me ocorreu uma frase de um filósofo chamado Sêneca que levo sempre na mente. Ele estava escrevendo a um discípulo, Lucílio. “Por mais que te espantes, aprender a viver não é mais que aprender a morrer.” Passamos tanto tempo atormentados pela idéia da morte, esmagados pela finitude das coisas, que morremos mil mortes antes de finalmente morrermos. Este o sentido da frase da Sêneca. Espero que você um dia você leia Sêneca, filha. Viver sem o terror da morte é viver uma vida bela, não importa a quantidade de anos. É esse o ensinamento de Sêneca, e também o do professor americano. As pessoas pensam que falar de morte é mórbido, mas não é, filha. O que na verdade faz mal é não falar de morte, como se ela não existisse. Se falamos dela, se a encaramos com naturalidade, vivemos uma vida boa. Se fingimos que ela não existe, somos esmagados pelo seu fantasma a cada dia.

A cena do Rei Leão que quero ver com você é aquela em que o Simba e seu pai contemplam do alto da montanha a imensidão do céu e as estrelas. De alguma forma estarei ali, sempre olhando por você, diz o pai a Simba com voz grave e firme, cheio de força e sabedoria. Eu também estarei ali sempre olhando por você, Camila, pedaço adorado de mim.

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O jornalista Paulo Nogueira é fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do Mundo.