Caminho de Bolsonaro ao poder seguiu “lógica da guerra”, diz antropólogo que estuda militares. Por Thiago Domenici

Atualizado em 12 de abril de 2019 às 22:30
General Hamilton Mourão e Jair Bolsonaro. Foto: Agência Brasil

Publicado originalmente na Agência Pública

POR THIAGO DOMENICI

Os militares voltaram ao poder com a eleição de Jair Bolsonaro e, após 100 dias de governo, a última pesquisa Datafolha indica que eles estão chancelados por parte significativa da população: 60% dos entrevistados consideram essa sobrerrepresentação militar no atual governo mais positiva do que negativa, enquanto o próprio presidente obteve a pior avaliação para um mandatário no período desde a redemocratização.

Para analisar os militares no poder, a Pública entrevistou o especialista em estratégia militar e um dos pioneiros no estudo da “antropologia dos militares”, o professor da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) Piero Leirner.

“Perceba que a figura dele [Bolsonaro] livra os militares de aparecer como os reais agentes de todo o caminho que foi traçado até aqui, que para mim foi um caminho que segue a lógica da guerra”, avalia. “Ele vale mais como alguém sobre quem pode recair os erros do que os acertos”, afirma.

Na conversa, Leirner analisa ainda como a Comissão da Verdade e a Lei da Anistia moldaram o cenário de chegada dos militares ao poder e fala sobre a arrumação silenciosa que fizeram no pós-ditadura. A anistia “zerou” o jogo, mas a Comissão da Verdade o “despurificou”, o que abriu a porta para um novo ciclo de participação política dos militares. “Foi aí que os grupos realmente resolveram começar a se mexer”, esclarece.

Na entrevista, o antropólogo, que é autor e coautor de obras como Antropologia dos militares e Meia-volta volver, fala ainda de temas como as redes sociais, sobre o que chama de “guerra híbrida” – “em que todo mundo fica desnorteado e perde a sensação do real” –, da postura de Mourão – “agora ele convergiu para essa dupla [com Bolsonaro], que é ao mesmo tempo a central de informações e contrainformações operando direto do núcleo do Estado” –, da postura da Justiça Militar e da morte do músico Evaldo dos Santos Rosa, de 51 anos, que teve o carro atingido por mais de 80 tiros de fuzil, disparados por militares no último domingo. “Foi uma ação militar no âmbito de uma ação de polícia. Mandar 80 tiros num ‘suspeito’ de assalto é completamente “Iraque”.

Em geral, o Exército tem boa reputação em pesquisas de opinião mesmo com o fato de termos tido uma ditadura militar. Em uma entrevista, você argumenta que as Forças Armadas têm um certo ressentimento de que os civis “não se interessam por eles” e de que, por isso, se fecham mais. Agora, eles estão novamente abertos, ocupando cargos no governo e sendo considerados fiadores da estabilidade do governo. Como você avalia esse cenário? Por quê, na sua opinião, estão no poder novamente?

Para se entender melhor como estas perguntas se conectam, precisamos inicialmente partir de uma distinção: uma avaliação é a opinião pública sobre a instituição militar e seu papel até recentemente. Evidentemente, depois de três décadas obliterada pela sua própria lógica intramuros, exceto quando se colocava em campanhas de visibilização (“Braço forte, mão amiga”) com inúmeras ações de assistência social – que sem dúvida podem ser contabilizadas em uma estratégia maior de ações “psicossociais” –, o que ficou foi um saldo positivo. Totalmente diferente de quando se está numa vidraça, como é o caso da maior parte do mundo político. Ao mesmo tempo, é notavelmente paradoxal que esta “retração” em direção aos quartéis provocou também uma queda do prestígio social da pessoa militar, que ficou muito apartada do relacionamento com o establishment. Quando, há poucos anos, você diria que os militares seriam vistos como “elite”? Trata-se de um quadro muito distinto, por exemplo, do norte-americano, que firmou uma elite baseada em um complexo financeiro-industrial-militar. O que passou a ocorrer agora? Ou, pelo menos, de alguns anos para cá, desde 2010 ou 2011? Algo até certo ponto inédito, que foi um conjunto de ações de alguns militares que procuraram galvanizar vários agentes em torno de um projeto que visava estabelecer uma nova elite do poder. Do meu ponto de vista, isso partiu de oficiais do topo, da reserva e depois da ativa, e que depois se espalharam em uma rede em que um foi puxando o outro. Como eles agora entram no radar como pessoas de elite, correm o risco de operar o paradoxo no sentido contrário, que é afetar negativamente a instituição.

Você avalia que pode existir um jogo ambíguo entre militares e Bolsonaro? Até onde essa relação é sustentável? E por quê, lá atrás, Bolsonaro foi o “elegido” pelos militares dentro da cadeia de comando do Exército?

Qual é, do meu ponto de vista, a ambiguidade? Trata-se do fato de que em um dado momento – fim de 2014 – o comando das Forças Armadas franqueou o acesso de Bolsonaro aos quartéis. Ele passou a frequentar formaturas, por exemplo, e tinha o canal liberado para oficiais da base, aspirantes e sargentos. Fez campanha com todas as letras, está tudo registrado no YouTube. Qual é o ponto, então? Ele estabeleceu uma autoridade carismática em relação à base, enquanto era mantido ao mesmo tempo com cautela e tolerância pelo topo. Criou-se uma relação quase de tipo “sindical”, com PMs inclusive, um “Jango às avessas” – porque alimentado pelo topo. Por que ele? Porque ele tem carisma – uma espécie de carisma mnemônico, porque é baseado em elementos extremamente repetitivos; mas não só. Desde cedo ele se fidelizou a grupos de pressão de militares da reserva, que atuavam como células de extrema direita, dando voz a eles no Congresso. Esses grupos foram uma base importante da articulação dessa nova “elite do poder” que mencionei acima. Então, desse ponto de vista, o que parece como uma contradição tem na verdade um fundo sintético. E obviamente traz problemas, pois se criou uma arquitetura em que a base está plugada ao presidente através de uma autoridade carismática, enquanto dirige-se ao topo através de uma autoridade burocrática. No meio disso, temos as pessoas que vão entrando na máquina por meio de relações pessoais. É uma situação bem difícil, e realmente não sei como os comandos das Forças vão de fato distanciar a tropa da política.

Sair da “caserna” para os cargos de poder significa um risco à democracia? Você já declarou que “deveria motivar reflexões sobre o perigo de misturá-la [instituição militar] à política”.

Não necessariamente. Não tenho nada contra alguém se aposentar e procurar algo para fazer. É melhor do que ficar toda tarde no Clube Militar destilando as adversidades. O risco todo aqui foi outro: terem deixado a política entrar com tudo dentro da caserna. Isso foi responsabilidade dos comandantes desde 2014 pelo menos, e também de Dilma e Temer, que nada fizeram. Não tenho o menor problema em dizer isto: Dilma tinha que ter esticado a corda e convocado o Conselho de Segurança Nacional para mandar os militares tomarem uma providência quanto ao grampo que foi exposto. É óbvio que eles poderiam se recusar, e ela seria forçada a demitir alguns. Se havia crise, no mínimo deveríamos ter sido expostos a ela, e não blindados por todos os lados. Depois dessa, ninguém mais poderia dizer que “as instituições estão funcionando normalmente”, quando não estavam e não estão. Portanto, risco à democracia foi nada ter sido feito, e agora quem fala alguma coisa se passa por maluco.

E Etchegoyen, que, apesar de não estar no governo, foi figura central no governo Temer, à frente do Gabinete de Segurança Institucional, e participante da ideia de intervenção militar no Rio de Janeiro? Por que será que Etchegoyen não é ministro do governo Bolsonaro?

Certamente ele foi uma peça-chave para termos chegado até aqui, por ou sem querer. Como chefe do GSI [Gabinete de Segurança Institucional], ele era o responsável pela segurança do governo quando Temer foi grampeado por Joesley Batista. Não era para ter sido demitido? Foi o contrário. O que vimos? Temer foi para as cordas, o Congresso travou, e aí travou para valer em fevereiro de 2018, com a intervenção do Rio. Não teve mais política de governo nem de Congresso depois disso. Só do Judiciário e do Exército, com seus tuítes. Ao mesmo tempo se montou as bases para uma concentração de poderes no GSI ainda durante a gestão Etchegoyen, que, no fundo, passou a ser o homem forte não só do governo passado, como pavimentou o caminho para Heleno ou quem quer que ocupasse o GSI depois. Imagine o que é, em ano eleitoral, você ter na sua mesa o controle de todas as máquinas de informação de “n” setores do Estado? Tinha isso, e tinha toda a aliança que coordenou a derrubada de Dilma neutralizada, de um lado pela inanição do governo; de outro, o que sobrava, sendo alvo de faxina pela Lava Jato. Sobraram os supostos outsiders. A partir daí foi um caminho fácil: com os agentes de centro-direita imobilizados e com a ameaça do PT ainda pairando, praticamente se jogou o “mercado” no colo de Bolsonaro. Tanto é que se construiu essa fantasia que ele ia resolver “tudo” em uma tacada. Na minha interpretação, sua vitória se deveu em grande parte pela neutralização dos adversários. Estamos assim em um campo de guerra. Pode chamar de uma guerra híbrida de segunda geração, se quiser. Dito isso, é interessante saber onde anda aquele que foi um homem forte que, mesmo sem querer, possibilitou esse cenário. Ouvi dizer que ele está de quarentena, o que é estranho, pois outros ex-ministros ou comandantes, como Villas Bôas, estão ocupando cargos. Só se for uma autoquarentena; enfim, é estranho, mas é plausível.

Qual o conceito de guerra híbrida e como ele mudou – se é que mudou – da campanha eleitoral para cá (há exemplos?) já com Bolsonaro presidente? Quais são esses elementos identificáveis com uma estratégia militar?

O conceito de guerra híbrida não é daqui. Mas, como a própria guerra híbrida, ele também produz confusão. Teoricamente ele foi “inventado” nos e pelos EUA por volta de 2005, 2007. O position paper sobre o assunto é de um tenente-coronel do USMC, fuzileiros navais dos EUA, Frank Hoffman, e o ponto principal é um “giro epistemológico” em relação às guerras convencionais.

Poderíamos bem dizer que é uma rotação entre um sentido “clássico”, baseado em Clausewitz, para uma adaptação pós-moderna baseada em Sun-Tzu, onde a “latência” da guerra se sobrepõe ao choque – aliás, o “choque” passa a fazer parte também de uma estratégia de “comunicação”. Nesse sentido, a avaliação é de que agora não há distinção entre “guerra e paz”, e portanto os teatros de operação produzem “efeitos híbridos”, como o borramento entre civis e militares. O resultado disso – falando muito resumidamente e com o risco de estar distorcendo muito – é que os princípios mais cruciais para o resultado da guerra se dão sobretudo na esfera da cognição, pois o que realmente importa é deixar o cenário o mais cinzento e indistinto possível, a ponto de manobrar as ações do inimigo a partir “de dentro” e sem que este saiba que está sendo manipulado. Por isso, talvez o principal set são as chamadas “operações psicológicas”, e seus protagonistas, as “forças especiais”, que podem atuar quase que de maneira autônoma – ao modo de células, ainda que recebam comandos de longe. A partir daí é quase guerra por “controle remoto”, baseada na cooptação de agentes que vão produzir os efeitos desejados numa “abordagem indireta”. Em poucas palavras, é a terceirização multinível das guerras. Os russos sacaram isso logo cedo e perceberam esse movimento sendo usado nas assim chamadas “revoluções coloridas”, que atingiam seu entorno geopolítico. Como resultado, mostraram que a essência da guerra híbrida é operar a partir de uma corrosão da política local, através de “agentes coloridos”, e que quem faz isso são os EUA: invadem, infiltram, cooptam e, finalmente, fazem os outros lutarem por procuração. No Brasil, parece que vivemos ainda uma terceira forma, ou uma segunda geração de guerra híbrida, pois de certa maneira a guerra híbrida foi produzida por setores do próprio Estado, notadamente do Judiciário. O Estado se corroeu “por dentro”, e a perpetuação dos métodos – abordagem indireta, camuflagem, criptografia – se estende até agora.

Quando você se refere à guerra híbrida e cita “notadamente do Judiciário”, não ficou muito claro para mim. Daria para exemplificar de qual Judiciário está falando?

Estou falando de um processo que ocorre desde o mensalão, mas cujo ápice é a Lava Jato. Trata-se da aplicação do “domínio do fato”: o Estado pegou elementos do senso comum e produziu um discurso que moldou o próprio senso comum. Tudo com estratégia de comunicação, eles forjaram a cognição das pessoas. Quando isso atingiu seu ápice, o Judiciário ficou dividido entre uma instância de piso e a instância superior, que está agora completamente fragmentada porque é refém da “opinião pública”. No fundo, a Lava Jato foi o agente operacional de uma estratégia de criação do inimigo público número 1, na minha opinião.

Como as redes sociais funcionam nessa lógica da guerra híbrida?

Isso está lá no livro do Andrew Korybko [Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes, 2018, Expressão Popular], muito bem analisado. Ele faz um estudo de caso a partir do Facebook. A partir dele eles identificam, cooptam sem saber e manipulam. A rede e os algoritmos se encarregam do resto. Produzem o que ele chama de “estratégia de enxame”. No caso daqui eu iria além. Como disse numa entrevista às redes, especialmente o WhatsApp, funcionaram como células semi-independentes que operavam como “estações de repetição”.

Sua horizontalidade garantia que, se uma caísse, as demais se manteriam e que nunca se chegaria ao centro da rede, ou emissor central. É bem básico dessas táticas de Opsi [operações psicossociais] e de Forças Especiais produzir criptografias e camuflagens com a tal “abordagem indireta”, é um esquema de “bombas semióticas” que não se tem ideia de onde foram disparadas.

Por isso, todo mundo fica desnorteado, perde a sensação do real. Aí, em um modo de “dissonância cognitiva”, as pessoas tendem a correr atrás de qualquer viés de confirmação. Onde vão procurar? No vizinho, no parente que mandou o WhatsApp. Aí ocorre o “enxame”, ou, se quiser, o “efeito manada”. Finalmente, quando se está nesse modo, dificilmente se restabelece um parâmetro “central”. Por isso mesmo, a guerra híbrida tem uma enorme inércia, e não parou nem vai parar no dia da posse nem nos primeiros 100 dias. As pessoas continuam no “modo campanha”.

Como você avalia esses posicionamentos considerados “mais razoáveis” do vice-presidente e general Mourão comparados aos de Bolsonaro? Ele tenta, em vários momentos, ser o “policial bonzinho”, digamos. Antes das eleições não era assim. Qual o significado disso?

Bem colocado: a estratégia parece mesmo essa de filme americano, “o bom policial e o mau policial”. Ambos querem a mesma coisa, e o bom policial usa o mau policial para operar uma fratura no adversário. Aí tenho uma pequena discordância em relação à pergunta, pois o método é o mesmo desde a campanha. Só que agora ele convergiu para essa dupla, que é ao mesmo tempo a central de informações e contrainformações operando direto do núcleo do Estado. E o que vemos desde a campanha? O uso intensivo de contradições, vai e volta, caneladas. Todo mundo entra em dissonância, aí o good cop aparece com a solução de ordem. Para mim, o significado é que este é um padrão que tende a permanecer, mesmo que se mude certas posições e se inclua mais personagens. O que importa é o clima constante de ameaça e contradição.

O que é característico da “identidade militar” a partir de suas pesquisas e como a ditadura militar afetou/afeta essa identidade? Qual o papel da Lei da Anistia e da Comissão da Verdade neste processo?

Minha pesquisa, quando tratou do tema da “identidade”, foi de maneira complementar a uma outra, a de Celso Castro – O espírito militar, 1990, editora Zahar –, que descreveu muito bem como são os mecanismos da construção da identidade militar. Lá ele mostra como o fundamento básico é a divisão em militares versus paisanos [militar sem farda], onde essa oposição é construída basicamente com atribuição de valores positivos aos primeiros e negativos aos segundos. Além disso, dentro dos militares se constroem outras zonas de convergências e divergências, entre forças e entre armas dentro de uma força, por exemplo, cavalaria, infantaria, artilharia. Em pares de oposição, vão se atribuindo valores mais ou menos “militares” e “paisanos” entre uma e outras, quase que em tom jocoso/acusatório. O que eu vi, na minha pesquisa, foi um processo que é ortogonal a este, que é a fundamentação da hierarquia nas várias instâncias da vida militar, especialmente as que afetam sua leitura do tempo e do espaço. Finalmente, relacionei isso com o problema da guerra e da situação de inimizade e alianças. Isso tudo – tanto na pesquisa de Celso quanto na minha – foi visto numa situação em que militares voltaram à caserna, e daí muito do que a gente produziu se distinguiu de toda uma literatura que estudou a ditadura e a transição à democracia. De certa maneira, imagino que vimos militares em um processo de “purificação”, e seguramente essa era a mensagem que eles tentavam, pelo menos a mim, passar: a anistia “zerou” o jogo. Embora, é claro, sempre houve enorme preocupação com aquilo que eles detectavam como uma ausência de elites que elaborassem um projeto nacional. O que a comissão fez, do ponto de vista deles? “Despurificou” e abriu a porta para um novo ciclo de participação política. Foi aí que os grupos realmente resolveram começar a se mexer.

Que concessões, dentro da lógica de hierarquia e poder, os militares tiveram que fazer para chegar ao poder agora, levando-se em conta o mundo social dos militares, as questões de ordem e hierarquia, visão de mundo etc.?

Acho que concessão propriamente dita, nenhuma. Não foi uma negociação com um grupo outro que não o seu. Não creio que houve “concessão” a evangélicos, olavistas, magistrados, partidos. Não houve “concessão” a Bolsonaro pelo fato de ele ser ex-capitão, pois ele vale mais como alguém sobre quem pode recair os erros do que os acertos. Perceba que a figura dele livra os militares de aparecer como os reais agentes de todo o caminho que foi traçado até aqui, que para mim foi um caminho que segue a lógica da guerra. Então, vejo tudo isso mais como reciprocidade do que concessão, ainda que se possa pensar que a reciprocidade envolva alguma “cessão” de si para outrem, uma troca. Seguindo esta lógica, vejo que houve uma certa “torção” interna, com a abertura para a fidelização em termos dessas autoridades que mencionei acima. Ela será – ou não – resolvida por eles, e só por eles. Por isso, quando falamos nesses diversos grupos, de certa maneira acho que eles estão sendo “operados” pelos militares, que convenientemente se mantêm como um fundo distinto. Não se trata de uma composição política no sentido clássico, mas de mandá-los para um teatro de operações através de uma “abordagem indireta”. Claro que, como este é um cenário muito codificado, e em termos que desconhecemos ou só captamos fragmentos, dificilmente entenderemos qual será o próximo passo.

Você já declarou que as Forças Armadas fizeram uma espécie de arrumação silenciosa pós-ditadura. Gostaria que você explicasse em detalhes essa arrumação e como ela impacta a atual conjuntura, ao menos os pontos que você considera centrais.

De certa maneira, ainda durante o governo Geisel se começou a alijar agentes que participavam mais ativamente da máquina repressiva. Isso inclui tanto o pessoal da tortura como alguns ligados aos serviços de informações, mas também tendências mais radicais que começaram a aparecer no fim dos anos 1960, tais como o grupo “Centelha Nativista”, que pretendia radicalizar a repressão e chegou até a cogitar um “golpe” no Costa e Silva. E como o governo atuou? Em relação a esses últimos, promovendo dispersão nas movimentações, colocando cada um em um lugar. Em relação aos da central da repressão, um pouco depois, bloqueando-os nas promoções – isso está bem detalhado no livro da Maud Chirio, A política nos quartéis, 2012, editora Zahar. O que aconteceu? Ambos os setores começaram a produzir células, aparentemente independentes, mas muito clonadas umas nas outras. Depois da abertura, essas células foram se mantendo, ganhando impulso e organicidade. Esses grupos se plasmavam a centros de estudo, nos clubes militares, e entravam nas escolas, como ESG [Escola Superior de Guerra], Eceme [Escola de Comando e Estado-Maior do Exército] etc. Portanto, disparavam seus torpedos semióticos também para a ativa.

É notável que, quando olhamos para a descrição que eles fazem sobre o Foro de São Paulo – como uma conspiração de grupos de esquerda que estabelece um plano às escondidas para tomar o poder –, vemos uma exata projeção de si. Passaram anos, durante os governos FHC, Lula e Dilma, repetindo palestras, posições, palavras de ordem, mnemonismos até conseguir maior densidade e vazar dos limites do mundo militar. Por exemplo, com extensa programação de intercâmbios com juízes, desembargadores, procuradores, delegados… Além disso, muita gente da comunidade de informações e da antiga área da repressão foi para outros setores do Estado, e também para atividades paralelas. Uma coisa foi puxando a outra. Quando todo mundo vai se encontrar e galvanizar uma tendência aparentemente homogênea? Na eleição de 2018. É notável que Bolsonaro teve algum trânsito com esse pessoal, por exemplo com grupos que constituíam chapas nos clubes militares. A referência ao Ustra não é só um ataque gratuito à Dilma; ele próprio era parte de um desses grupos.

No caso do Centelha Nativista, que, ao que entendi, tentou o golpe dentro do golpe, era de paraquedistas e inspirou o slogan do atual presidente: “Brasil acima de tudo”. Confere? Bolsonaro teve relação direta com esse grupo?

Confere. Eles se espalharam e depois emplacaram o seu brado no PQD [paraquedistas]. Provavelmente Bolsonaro não esteve ligado diretamente a eles, que já estavam muito fracos em 1987. Mas os PQD ficaram bem alinhados aos “princípios” da coisa… E eram tão próximos a esses grupos da reserva que se recusaram a se mudar com o resto das Forças Especiais para Goiânia, permanecendo no Rio de Janeiro, onde está o centro desses movimentos.

Qual a sua opinião sobre a Justiça Militar, transparência do Exército e condutas que levaram à morte do músico Evaldo, que estava com a família dentro do carro? Foram 80 tiros no carro em que ele estava.

Não me entenda mal, mas um Exército, no âmbito de suas atribuições normais, não deve ser transparente. Mas também não deve ser nem político nem polícia. Polícia não tem que ter inimigo, Exército sim. Quem vai ser inimigo do Exército? Veja bem, estamos diante de uma situação extremamente delicada. Há algum tempo militares assimilaram uma ideia, que vem da vertente americana da teoria da guerra híbrida, que pode aparecer inclusive no uso de “organizações criminosas” para lançar um ataque contra o Estado – o que as qualifica de maneira muito próxima às “organizações terroristas”. Isso fica particularmente claro nos manuais de emprego das chamadas MOUT, Military Operations on Urban Terrain. Onde isso foi usado? No Haiti e nas GLOs [Garantia da Lei e da Ordem] daqui. Tivemos o top of mind militar do atual governo atuando em ambos, inclusive na segurança da Copa e Olimpíada, quando Dilma abriu a porteira para uma lei que amplia bastante o conceito de “terrorismo”. Então o que estou pensando aqui? Na abertura que isso pode dar a uma ação doméstica das Forças Armadas baseada no pressuposto de que elas não estão combatendo o “crime”, mas sim o “inimigo”. Aí é guerra como foi no Oriente Médio: alguém em sã consciência acha que só foram “realizados” alvos militares lá? O caso que ocorreu no final de semana está ainda a meio-termo. Veja que, em um primeiro momento, o Comando Militar do Leste soltou uma nota segura de que foi um “revide”, depois mudou. Não temos ideia do que aconteceu depois do ocorrido, então as coisas se processam como uma ação militar. O desdobramento disso vai ser interessante, pois entre a ação propriamente dita e a primeira nota há uma clara desconexão: alguém aí não falou o que devia, e resta saber onde, na cadeia de comando, foi a falha que deixou passar a informação de que haveria uma “bala a mais” – a que foi disparada pelo suposto “assaltante”.

Quando você diz que “não deve ser nem político nem polícia”, significa que essa ação foi de “polícia”? E que é uma fratura nas atribuições do que uma tropa deveria fazer no cotidiano?

Foi uma ação militar no âmbito de uma ação de polícia. Mandar 80 tiros num suspeito de assalto é completamente “Iraque”, né?

Outra questão: quando a própria Justiça Militar está encarregada de julgar o caso, e levando em conta que a não transparência é uma questão que você pontuou, não prevalece o “espírito de corpo” nos julgamentos ou uma suspeição?

Aí não sabemos. Pode bem ser que ela resolva dar uma “mostra” de que eles são rigorosos com “desvios”, e que assim eles não são “corruptos” nem “lenientes” como os paisanos. Será preciso ver se eles não vão usar o caso como estratégia de Opsi, entende? O que não vai ser transparente é o fato em si: só sabemos o lado atingido; do que deu os tiros, não temos a mínima ideia.